Histórias de Cannes: Luiz Fernando Garcia
E por que falamos tanto de Leões?
Propaganda que funciona, como gostamos tanto de destacar, é aquela que se alimenta da vida, da realidade e do sonho, propondo – a partir daí – uma abordagem criativa e pertinente ao universo da marca, para atender a uma demanda mercadológica ou social. E para nós, publicitários, uma das formas mais usuais de busca desses fragmentos significativos da vida acontece por meio da observação da observação (“xi, começou um papo de professor…” – calma, prometo não complicar o simples!).
Concluí o curso de propaganda em 1979. Época do filme publicitário em película e dos anuários impressos bacanas. Raros os profissionais que conseguiam sair frequentemente do país em busca de referenciais atualizados e diferenciados de propaganda. Mesmo as agências com perfil multinacional dependiam de escassos momentos de partilha deste material produzido nos principais cantos do mundo.
Um dos meus primeiros encantos ao entrar em uma agência foi descobrir os anuários. Muitos. Com uma qualidade incrível na seleção das peças e principalmente na produção. Manuseá-los com aquele cuidado respeitoso, saboreando cada página, cada peça. Até o cheiro daquele papel era único. E eu, leitor atento aos detalhes, aprendendo e buscando insights.
Do mesmo modo e com o mesmo encantamento, poder participar das apresentações dos rolos de filmes publicitários das conceituadas produtoras brasileiras. Inclusive ver aquele lendário rolo (acho que da Sonima) que pela primeira vez apresentava os erros das filmagens, num mundo onde pegadinha não existia.
E o máximo dos máximos: assistir à apresentação do rolo de comerciais premiados no ano. Bom, demorava uns seis meses entre a premiação ocorrer e o rolo ser exibido aqui em Sampa. Pagando para ver, em algum auditório lotado, com mais uns 500 colegas profissionais. Gente de todas as idades, principalmente jovens. Muitos sentados nas escadas e no chão, buscando guardar na retina e na memória (alguns anotavam compulsivamente) o tsunami de boas ideias ali apresentadas. E inclusive descobrindo que alguém mais ágil já havia visto esta ou aquela peça e já havia “chupado de canudinho”. A gente brincava que, em alguns casos, deveriam inventar um prêmio para a velocidade da cópia!
Nessa época, o quente era o rolo do Clio. Cannes, apesar de já existir, ainda não era tão importante assim. Mas vinha crescendo e, pouco tempo depois, inverteram-se os pesos.
Esta minha memória toda só quer evidenciar a nossa necessária e contínua busca por referenciais. No caso, por meio dos festivais, olhar para a peça de alguém que já olhou para a realidade, reinterpretou-a, colocou no ar e de certo modo ganhou um referencial de sucesso (prêmio de criatividade). E nós, diante da eterna cobrança de sermos inovadores, mas apresentarmos potenciais evidências do sucesso deste esforço, muitas vezes utilizamos esta visão referenciada, porque “está bombando, é a tendência que o festival nos mostrou”…
Eu só tive o privilégio de ir a Cannes já maduro e, na época, à frente do curso de Propaganda da ESPM SP. Os pontos mais interessantes que vi foram: descobrir que era possível ter um único lugar onde muitos dos principais atores de nossa área transitam com naturalidade ímpar e onde os encontros se realizam com menor cerimônia. Cannes parece ser a grande praça do interior onde os publicitários “fazem footing” (pergunte para o seu tio avô o que é isto!). Muitos realmente estão imersos nas sessões (long e shortlists) de rolos e rolos, de mostras e mostras… Nos últimos tempos, outros tantos disputando os espaços das palestras bacanas ou das palestras mais charmosas, porque muitas das peças ali destacadas já foram vistas via internet. E por fim, passear pela Croisette, passar horas tendo à mão uma cerveja long neck (que custou uns 8 euros) na frente do Martinez esperando descobrir onde será a melhor festa e como ser convidado para ela… Clientes cada vez mais buscam fazer essa imersão para serem melhores clientes (viva!). Agências, além de serem melhores agências, também estão lá buscando estes clientes (viva de novo!).
Bom, pessoalmente, como alguém de mercado e da escola, o simples fato de reencontrar lá tantos queridos amigos, ex-alunos e colegas, muitos em posições de destaque e que – com generosa humildade – te reconhecem, já é por si só um prêmio!
Antes, durante e após Cannes, o assunto é… Cannes. Prediction. Disputa por Roger Hatchuel, Young Lions… Acompanhamento em tempo real via mídias especializadas que transferem para lá seus principais staffs para conseguir a melhor cobertura. E, depois, palestras e workshops buscando entender o que Cannes apontou como tendência.
O que nos remete ao ponto original deste texto: por que falamos tanto de Cannes? Porque precisamos demais de referências. Porque queremos entender de uma vez, em esforço concentrado, o que nos une e o que nos singulariza no universo da propaganda mundial. Porque estamos tão concentrados em responder rápida e competentemente nesse modelo de negócio, que a propaganda perigosamente está se alimentando principalmente de propaganda.
Cannes, uma excelente referência, sessentona, merece o “piquepique”. É um ponto notável, que inclusive tem acolhido debates a respeito da educação da comunicação com o mercado (a ESPM tem apresentado, edição após edição, workshops diferenciados sobre o tema, lá em Cannes).
Mas o mundo além da Cote D´Azur contém muitas e tantas mediações interessantes nas artes, nos cinemas, nos parques, no andar nas ruas, no ver, ouvir e viver a vida em si, que farão o universo Cannes ganhar novos significados.
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*publicitário, diretor-geral da graduação da ESPM-SP e um fã de Cannes!