Histórias de Cannes: Marcelo Pires

 

A sobremesa de Woody Allen

Minha melhor recordação de Cannes não tem nada a ver com o Festival: passei a lua-de-mel entre Itália e França. Eu e Letícia fizemos uma viagem inesquecível, um roteiro de hotéis bem bacanas – e, claro, o Carlton foi um deles.

 

Mas, compreendo, minha lua-de-mel não é pauta para este artigo. Vamos, portanto, a uma história que aconteceu durante um dos dois festivais que, até agora, acompanhei ao vivo e em cores (fui ao Cannes Lions International Advertising Festival uma vez pela W/ Brasil, outra vez pela Ogilvy).

A história é do tempo da Ogilvy. Estava em Cannes com gente muito querida – Virgílio Neves, Ricardo Ribeiro, Tetê Pacheco, Paulo André, Cláudia Tajes, Paola Siqueira, entre outros. Uma bela noite, eu e Tetê decidimos voltar a um restaurante que conhecíamos e adorávamos: o Tetou, em Golfe-Juan. Queríamos comer outra vez a melhor bouillabaisse do mundo. Pegamos nossa grana (o Tetou só aceita cash) e lá fomos nós.

Chegamos, pedimos vinho, espiamos o mar, miramos o horizonte e encomendamos nossa bouillabaisse. O rosé da Provence é famoso no mundo todo. Eu atribuí ao Domaine Ott o comentário que Tetê fez em seguida: “Marcelo, olha ali, o Woody Allen”. Lembrei-a que estávamos no festival de propaganda de Cannes – não no de cinema. Mas, como sempre confiei nas observações da Tetê, olhei pra trás e lá estava ele, Woody Allen, com Soon-Yi e mais uma pessoa, um homem (com terno e gravata) que não sabíamos quem era.

Deu, confesso, uma loucura em mim e na Tetê. Encontrar Allan Stewart Königsberg alterou algo em nossas personalidades geralmente tão cosmopolitas. Perguntamos para o garçom se, por acaso, sei lá, não tinha uma mesa mais próxima, bem, daquele senhor ali de óculos. E o garçom, pasmem, respondeu “oui” – e nos deixou a umas duas mesas do W/Allen.

Algumas taças de vinho e colheradas de bouillabaisse depois, Tetê fez outra declaração bombástica: “O Woody Allen está chorando”. Quem dirigiu “Noivo neurótico, noiva nervosa”, “Tiros na Broadway” e “Meia-noite em Paris” não merece a reação que esta frase causou em mim – fiquei com muita vontade de rir.

Apesar da minha já mencionada confiança na opinião de Tetê, concluí que, neste caso, ela estava doida demais. De costas para Woody, fiquei com vergonha de virar, olhar, conferir se existiam lágrimas por trás de um dos óculos mais famosos do mundo. Tetê continuou narrando a cena, jurando que Woody Allen estava chorando em frente a um singelo prato de sobremesa.

Ok, a comida do Tetou pode realmente levar uma pessoa às lágrimas – é emoção demais. Mas descartamos esta versão e ficamos listando mil outras hipóteses para a chance de Woody Allen realmente estar chorando em plena Costa Azul.

Acabamos culpando o homem desconhecido que dividia a mesa com o casal Allen – na nossa imaginação rosé de fanzocas, este homem misterioso seria um produtor inescrupuloso que estava, no mínimo, se metendo na incrível trilha musical do próximo filme do genial diretor.

O certo é que Woody Allen e Soon-Yi, em seguida, pediram a conta e saíram Tetou afora, seguidos pelo provável canalha. Ficou na mesa, abandonado, apenas o pratinho de sobremesa – o doce de Woody. Como maluquice pouca é bobagem, eu e Tetê consideramos a possibilidade de ir lá e pegar o pratinho. Dizem que quem bebe do mesmo copo descobre os segredos

 

um do outro, não dizem? Poderia acontecer o mesmo fenômeno com pratinhos de sobremesa. E aquele doce, talvez, aumentasse não só a nossa taxa de açúcar, mas também a nossa taxa de talento. Vou lá? Não vou? Vai tu! Vou eu. Vamô junto. A gente pediu um café e se conteve a tempo – voltamos a ser os cosmopolitas de sempre. O garçom, minutos depois, recolheu o pratinho de Mister Allen. Foi-se o talismã. Foi-se o patuá. Foi-se o Santo Graal. Ah, se arrependimento matasse.

Eu sei: esta é uma história de Cannes que não envolve ouro, prata ou bronze. Ela é singela, se contenta em registrar o frágil mistério (ou equilíbrio) que bons momentos em boa companhia têm. Pensando bem, para que uma Riviera é feita se não para este tipo de essencial fragilidade?

Nós, publicitários, resolvemos falar de trabalho em uma região que não nasceu exatamente para isso.

 

*diretor da Ideia da Silva