Três pequenas histórias de uma longa história

1995, Cannes. Minha vida profissional começou mesmo no primeiro dia em que pisei em Cannes. Foi quando comecei a entender, de verdade, a importância da minha profissão. Foi ali, no escuro das salas de exibição e no brilho das festas noturnas que entendi como a propaganda era – e é – um dos principais materiais de construção para se levantar grandes marcas. Marcas como Nike, Nestlé, Apple, Volkswagen, Fedex, Sony. Nomes que conseguiram criar um forte vínculo com a vida de milhões de pessoas pelo mundo todo – fato que mostra a verdadeira dimensão do nosso ofício.

Mas se existe um livro chamado “Entenda o ser humano”, o brasileiro é um capítulo à parte. Por isso, apesar da pompa e circunstância de Cannes, são muitas as histórias das nossas “primeiras vezes” – as pequenas comédias dos brasileiros produzidas no início de sua invasão “bárbara” à Riviera Francesa.

Como, por exemplo, a história de uma dupla de criação que tentava estacionar seu carro alugado pelas ruas de Saint Tropez. Depois de muitas voltas, encontram um espaço livre à frente do que parecia ser uma loja, onde na fachada se lia “Gendarmerie”. Não tiveram dúvida: largaram o auto ali mesmo. Na volta, deram de cara com uma dezena de guardas e um guincho prestes a levantar o carro e desobstruir a entrada da tal loja, que era a Delegacia de Polícia. Polícia que os franceses insistem até hoje em chamar de Gendarmerie.

Ou, ainda, na minha primeira viagem a Cannes, quando insisti em esquiar ao lado de outros publicitários que já praticavam o esporte aqui no Brasil. Eu, claro, jamais tinha sequer chegado perto de um esqui aquático. Após algumas horas sendo surrado pelo mar e com vários litros de água salgada indo para o estômago, abatido, desisti da aventura, alegando câimbras. Serviu para me dar a certeza de que eu e o mar não tínhamos absolutamente nada em comum.

No sábado, ao ver os vencedores dos Leões, outra certeza voou de volta comigo para São Paulo: eu jamais deixaria de voltar para Cannes. Para aprender e para tentar levar Leões pra casa.

1999, Hotel Carlton. Jantar da rede Lowe com os criativos e diretores de suas agências que estão presentes no Festival de Cannes. Eu, único brasileiro, estava lá representando o escritório do país. Das vinte e poucas pessoas presentes, conhecia apenas um ou outro de reuniões anteriores. Ou seja, um evento que tinha tudo para ter emoção nível zero.

Lugares livres na mesa. Sentou-se ao meu lado um homem, trinta e poucos anos. Sua pele mostrava um exclusivo vermelho-com-tons-de-roxo, denunciando o estrago que o sol da Riviera havia feito naquele inglês rato branco por natureza.

Notei que muitos na mesa se dirigiam a ele para dar efusivos parabéns. Perguntei o porquê dos cumprimentos. Tímido, ele explicou que seu filme tinha acabado de ganhar um Leão de ouro. Claro, eu também fui efusivo nos meus parabéns e perguntei de qual filme se tratava. Ele respondeu, em voz baixa: “Litany”, para o jornal The Independent. Soltei um “baraaaalho” bem alto – que, graças a Deus, o inglês não entendeu.

Nome do “rato branco”: Charles Inge. Um cara que em sua carreira ganhou mais de 30 Leões, todos em filmes. Engatamos numa conversa franca sobre nossa profissão e sobre as diferenças dos nossos mercados durante horas.

Perguntei sobre detalhes do filme, desde sua concepção até a versão final. Ele me contou, por exemplo, como ficou mais de 30 dias acompanhando a produção e filmagem do “Litany” – sem se dedicar a nenhum outro projeto (igualzinho ao que a gente faz aqui, não?). Contou como essa dedicação aos detalhes trouxe riqueza ao resultado final. Contou até alguns segredos, como quais cenas importantes do filme foram criadas durante a filmagem, como novas frases foram escritas por ele e pelo diretor ali mesmo no set ou durante o longo processo de edição. Enfim, uma conversa que valeu por um workshop completo.

No final, não me contenho e digo, com sinceridade:
– Man (“cara”, pros mais íntimos…), na minha opinião, “Litany” é o melhor filme do festival, de longe…

Ele responde, com o típico humor britânico:
– Que pena que você não está no júri, assim eu teria chance de levar o Grand Prix…

Rimos os dois. E fomos cada um para o seu lado da vida. Adivinha quem levou o Grand Prix no dia seguinte a esse papo?

Semanas depois soube que o dono do The Independent, que não havia visto a edição final (aprovada apenas pelo diretor de marketing). ficou pissed off com algumas cenas mais fortes e tirou a conta da agência. Resumo da história: diretor de marketing aprova um dos melhores filmes da história e veicula. Aí o dono da empresa não gosta do filme e sobra pra agência… Hmmmm… Parece que certas coisas na nossa atividade não mudam tanto assim…

2006, Palais des Festivals, último andar. Dez anos depois da minha primeira vez em Cannes, lá estou, agora como jurado. E justo na categoria Radio. Digamos que Radio não parecia a categoria mais indicada para quem fala uma língua que para muitos países parece uma mistura de espanhol com marciano…

Tensão no primeiro dia. Mas o presidente do júri nos deixou tão à vontade que, no terceiro dia, eu já estava atirando bolinhas de papel no jurado britânico. Que, pasmem, me atirava as bolinhas de volta…

Como era Copa do Mundo, dei uma de folgado e para minha surpresa os jurados atenderam ao meu pedido: interrompemos o julgamento para ver um jogo do Brasil contra Austrália no Carlton e depois voltamos para os trabalhos. Detalhe: todos os jurados torceram para o Brasil (menos o jurado argentino, claro).

Saí de Cannes feliz da vida com os seis Leões que o Brasil ganhou em Radio (apesar da tal língua que mistura espanhol com marciano) e fui passar uns dias de férias com a esposa, numa cidadezinha próxima. Lá, recebi uma ligação da agência: nosso cliente que havia levado quatro Leões no festival comemorou o feito com um anúncio em jornais de grande circulação em várias capitais. Mais: além de comemorar, homenageou a agência e a equipe responsável pelo feito, colocando inclusive uma foto minha. “Os caras da agência estão de sacanagem, claro”, eu pensei. Sacanagem mesmo foi a minha sensação de culpa quando recebi a imagem do anúncio publicado.

Achei quase impossível a viagem ter um final melhor. Mas teve. Na volta ao Brasil, em Paris, a atendente da companhia aérea me avisa: deu overbook na executiva. Como assim? Overbook na executiva? Mas antes que meu arsenal de boa educação fosse utilizado, a atendente avisa:
– O senhor terá um upgrade e irá voltar na primeira classe.

Ameacei ficar ofendido, mas deixei pra lá. Para minha surpresa, quem senta na fileira ao meu lado na primeira classe? Zico. Sim, ele mesmo. Zico estava voltando da Copa onde tinha sido treinador da seleção do Japão.

Resumo: por alguns momentos, a primeira classe virou uma mesa redonda de futebol, com a presença de um dos maiores craques da história do futebol, minha maior paixão. Aliás, minha segunda maior paixão. Porque a primeira, desde a primeira ida a Cannes, tinha se tornado a propaganda.

*publicitário e ex-sócio e CCO da Fischer & Friends