Histórias de Cannes: Marisa Furtado
6 Leões, 36 filmes e um porre: viva os 60 anos de Cannes!
“Eu sou um leão de fogo, sem ti me consumiria. A mim mesmo eternamente…”. Caetano Veloso fez essa música para homenagear a Terra, mas seriam versos perfeitos para definir a relação entre um Leão de Cannes e tantos publicitários que o perseguem há 60 anos. Tem até aqueles que conseguem um Leão para chamar de seu, mas confesso que chegar pertinho, como jurada, e entender melhor essas “Mentes brilhantes”, me acalmou bem o coração. Então, esta é uma passagem com muitos lances de cinema, como não poderia deixar de ser.
Tive a honra de representar o Brasil como jurada do festival em 2010. Feito Macabéa, em “A hora da Estrela”, assisti atônita ao príncipe loiro dourado vir em minha direção, abrir a porta da limo (não aquelas cafonas…) e me levar do aeroporto ao hotel. Depois, soube que ele era polonês. Então, o cara usava o melhor “bronzage” de Estée Lauder, mais um truque de filmagem e da Riviera Francesa. Era o próprio “Alfie, o Sedutor” ciente de seu poder naquele sonho de “Cinderela”. Destino? Hotel Carlton, um point nostálgico dos anos 1950, imortalizado por Hollywood e seus frequentadores. Já tinha passado a minha lua de mel lá, mas voltar como convidada do festival realmente fez a diferença. Mais ou menos como quando Melanie Griffith assumiu o corner do andar onde trabalhava, em “Uma secretária de futuro”.
No corredor que dava para o meu quarto, tudo parecia familiar: o carpete florido, o estilo anos 1940, o branco, os janelões, mas não era o Copa, não! Aquele foi bem um momento “Terra em transe”, imagina a pan, câmera no ombro, imagens tremidas: era eu olhando para o nada, com lágrimas nos olhos. Fiquei muito emocionada. Ao entrar no meu quarto, abri a cortina e ups!, nada de vista para o mar, somente uma “Janela indiscreta”.
Em Cannes, as pessoas andam livremente em seu habitat, nuas, desgrenhadas, sem se importar se alguém as observa. É divertido. A vista estava mais para “O exótico Hotel Marigold”, cheio de velhinhos bronzeados e magros. Depois de quase 20 horas de viagem, era a hora de ganhar o primeiro Leão: desfrutar a praia do Carlton, no melhor estilo “Let’s get lost”, e ficar como Chet Baker, perdidona na poesia do lugar, com a paisagem linda dos cruzeiros e de Cap d’Antibes, um pequeno monte logo à frente da Riviera. Mas a emoção não para em Cannes, especialmente quando você tem a chance de participar dos bastidores do Palais.
Antes do gigante Terry Savage, na época o organizador do festival, quem nos deu bonjour! foi a sonhadora “Amélie Poulain”. Juliette Binoche estava nos olhando de forma fixa, num imenso painel do Festival de Cinema de Cannes. Nos melamos por seguir a trilha de muitos agraciados com a Palme d’Or, por conhecer a rotina do festival, dos bastidores, os camarins para os famosos (por onde eles passaram e passam) com muitos quadros e autógrafos nas paredes. Mas claro que tem aqueles jurados blasés, que não se deixam levar pela fantasia de criança de visitar “A fantástica Fábrica de Chocolate”. Mas o docinho acabaria logo.
Pegando o elevador que não cai, mas faz você perder o chão, chegamos a uma imensa sala, cheia de caixas e papéis, sem saber que ali aconteceria “O massacre da serra elétrica”. Tive a sorte de ter no júri o argentino Pablo Alzugaray, CEO da agência espanhola Shackleton, que anda sumida, mas na época, apontou um “Caminho da liberdade” em pleno “Apocalypse Now”, em que nos encontrávamos em Direct, pela migração digital e pela disruption da comunicação. Mas o presidente do júri foi perfeito, assim como as atuações de seu compatriota, o ótimo Ricardo Darín, encontrando uma boa dose de humor e perspicácia, mesmo com a inflamação das “Star Wars”. Aliás, repetindo “Um conto chinês”, também tínhamos no júri um “Turista tcidental” da China, que não entendia nada do ocidente, nem inglês, nem espanhol, que rapidamente foi “adotado” pelos latinos.
Finalizado o primeiro dia do júri, senti vontade de ter uma bola como o “Wilson”, parceiro de Tom Hanks em “Náufrago”, para rir, desabafar, esmurrar e chorar as pitangas. Me senti feito a estagiária incompreendida em “Do que as mulheres gostam”, que vai para casa se afundar e quer morrer. Meu Deus!, para levar o Leão era preciso mais do que talento, inovação e uma dose de sorte: era preciso vencer a resistência de “Doze homens e um segredo”, imitando a energética “Fargo”. Era uma dúzia de jurados unida por interesses comuns e aquelas forçadas de barra contra tudo e todos, como os democratas da era “Lincoln”. E, assim, a semana lembrou muito o “Feitiço do tempo”: acordar, conhecer mais entranhas do Palais, brigar pelo Brasil e sair naquela adrenalina, again e again.
Ainda bem que, para desopilar, pelo menos para mim, em Cannes tem sempre o “La dolce vita”, o lado mais pé no chão, subindo à direita da estação de trem, com o bairro das pessoas normais, o comércio local, o mercado municipal, onde la decadence e o clima “Ironweed” mostram um lado comum e rotineiro, que pouca gente circula em Cannes. Já a praia é eternamente discotecada pelos “Embalos de sábado à noite”. Na noite em que antecedeu o anúncio dos prêmios, usei desse artifício “Argo” para não vazar o resultado, disfarçando aqui e ali. De volta ao “The Truman Show”, dentro do Palais, chegou a hora de anunciar os cases premiados na coletiva de imprensa. Ainda que “Lost in translation”, o Brasil teve seis Leões, e voltei com o orgulho do “Pagador de promessas”. Para comemorar, festinha na Rue Saint-Antoine, que os brasileiros apelidaram de Pelorran (Pelourinho), totalmente no mood “Priscilla, Rainha do Deserto”. Armando Ferrentini, “O Poderoso Chefão”, me viu dançando na rua, e rimos as tantas no “After Hours”. Enfim, o “Campo dos sonhos” permanece, na nossa “Jungle” do dia a dia e sempre com a certeza de que “Dias melhores virão”. “Do fundo do coração”.
*sócia e diretora de criação da Fábrica Comunicação Dirigida