Histórias de Cannes: Renato Cavalher

 

Um Leão punk

No ano 2000, enquanto o mundo todo discutia a caça aos Leões fantasmas no Festival de Cannes, uma agência de Curitiba apostou na ressurreição do felino. O cliente era o Ministério da Saúde, na gestão do José Serra, e a agência era a Master Comunicação, da qual fui diretor de criação por bons anos.

O anúncio em questão tinha o objetivo de estimular as mulheres a realizarem o autoexame das mamas para prevenir o câncer. Os gêmeos Roberto e Renato Fernandez criaram um anúncio interativo com a famosa dobradinha MAD, onde uma mulher bonita aparecia nua da cintura pra cima, de frente e de costas. Ao dobrar o anúncio, conforme a indicação das setas, um dos seios desaparecia, sugerindo a mastectomia.

O resultado final era animador, um anúncio forte, mas ao mesmo tempo delicado e sensível. Gostamos tanto dessa ideia que nem levamos alternativas para Brasília, apostamos todas as nossas fichas nela. Apresentamos o anúncio para o secretário de Comunicação, que submeteu aos técnicos do Ministério da Saúde. Todos aprovaram com louvor e voltamos felizes para Curitiba, com o sentimento de dever cumprido.

Uma semana depois, quando o anúncio já estava em fase de produção, aguardando a aprovação final do orçamento, recebemos uma ordem do cliente: “Para tudo! Precisamos de uma nova opção”. Como assim?! Ficamos sem entender o que tinha acontecido, até descobrir que, numa visita ao Rio de Janeiro, o ministro havia mostrado o anúncio numa reunião no Inca (Instituto Nacional do Câncer) e uma das diretoras achou o anúncio de mau gosto. Disse que não deveríamos “brincar” com um tema tão sério. O ministro pediu para repensar a campanha e foi o suficiente para bater a insegurança geral. Num instante, a unanimidade mudou de lado e ficamos, nós da agência, isolados na defesa da ideia. Foi uma luta inglória, ninguém queria reabrir a discussão com uma doutora com PhD. Tentamos um contato direto com a nossa inquisidora, mas não fomos atendidos.

O que fazer numa hora dessas? Bem, o bom senso manda agir com prudência. Apresentamos outras ideias e acabou indo para o ar um placebo qualquer, do qual nem me lembro. Mas ficou aquela sensação ruim, de pai que não defende o filho de uma injustiça da professora. Avaliamos a situação e tomamos uma decisão corajosa, mas completamente irresponsável. Decidimos botar fogo na escola, quer dizer, seguir em frente com a produção do anúncio, sem dividir o risco com o atendimento ou com o presidente da agência. Ligamos para o Bob Wolfenson, explicamos o cenário todo e ele topou produzir a foto no risco. Finalizamos o anúncio e – prova dos 9 – inscrevemos em Cannes, à revelia do cliente. Naquela altura, éramos rebeldes sem causa e sem medo de perder o emprego ou a conta.

Meses depois, quando cheguei em Cannes num domingo e vi o anúncio exposto no shortlist, já deu um frio na barriga. Estava ali, na parede, sendo visto e manipulado por pessoas do mundo inteiro, sempre seguido de algum gesto de aprovação ou comentário elogioso, ou seja, com grande chance de premiação. Não deu outra: Leão de prata!

Segundo o Marcello Serpa, que participou do júri, “foi prata fácil”.

A alegria foi tanta que nos esquecemos de pensar em como a notícia iria repercutir no Brasil, mais especificamente, no Planalto Central. À noite, durante a comemoração, no Martinez, depois de várias taças de champagne, o meu telefone toca. “Renato, seu…” (seria deselegante repetir aqui). “Agora vou ter que veicular o anúncio!” Era o Secretário de Comunicação do ministro, furioso comigo. Fui curto, porém firme. Do alto da minha coragem etílica, respondi, enfático: “Ffai”.

E assim foi. O anúncio depois foi assumido pelo cliente e premiado em todos os outros festivais dos quais participou, nacionais e internacionais. E foi eleito “O Melhor Anúncio do Ano” pelas leitoras das revistas Nova e Claudia. Mais importante ainda, o número de diagnósticos precoces de câncer subiu significativamente nos anos seguintes, ajudando a salvar mamas e vidas.

Na Esplanada dos Ministérios, nunca mais se falou no assunto. E ninguém mais questionou a campanha, nem as doutoras do Inca.

Moral da história: nessa profissão, vale a pena ser punk de vez em quando.

*vice-presidente de criação do Grupo OM Comunicação Integrada