Histórias de Cannes: Ricardo Figueira

 

O duelo de um Grand Prix

Era bem quente, tarde da noite na Côte D’Azur, e nós, umas 20 pessoas, mais uma vez trancados numa salinha cheia de computadores depois de quase uma semana seguida de trabalho intenso, vendo o azul do Mediterrâneo só pela janela. Me lembro também de não ter aceito o convite VIP para ver o jogo do Brasil na Copa do Mundo naquele dia, na Alemanha, com tudo incluído, porque tinha que continuar a árdua tarefa do último dia de julgamento, a decisão do Grand Prix de Cyber Lions. Até hoje eu não sei como alguém em sã consciência poderia negar isso. Mas tomei a decisão certa. O julgamento durou dia e noite. Era um ano bem fértil com vários ouros na disputa, um inclusive meu, o que deixava a minha noite ainda mais angustiante.

 

Já eram altas horas, quando os dois ouros finais dividiram os jurados numa disputa muito acirrada.

As peças que protagonizavam a guerra em questão eram “Still free”, o filme viral da Droga5 em que um grupo de pichadores entravam na área de segurança da força aérea americana e pintavam no Air Force 1 a frase “Still free”, nome oficial da nova coleção da marca de roupas Ecko. A ação na época deixou o mundo inteiro boquiaberto, inclusive a Casa Branca. O segundo filme concorrente ao Grand Prix era “Crossbar”, para Nike, criado por uma agência dinamarquesa, cujo diretor de criação e autor estava no júri, apenas acompanhando a votação. O filme dele era aquele com o Ronaldinho Gaúcho calçando a nova chuteira da Nike e treinando um bate-bola incrível no travessão. Naquela época, os dois filmes estreavam uma forma de comunicação baseada num novo dress code para a propaganda, o famoso “será verdade ou mentira da internet” que na dúvida todo mundo repassa, afinal, o que vale é o show.

Pois bem, a discussão de mais de oito horas terminou quando o Lars, criador da peça “Crossbar” se levantou com a permissão do presidente e surpreendentemente fez uma defesa brilhante pela qual a peça concorrente “Still free” deveria ser premiada e não a dele. Me lembro perfeitamente como se fosse hoje, todos os jurados se olhando e dando o veredito final ao premiar “Still free” com o Grand Prix.

Esse episódio do Grand Prix pra mim foi um marco muito grande em termos de aprendizado. Enquanto a maioria dos profissionais do mercado briga com unhas e dentes por uns pontinhos a mais a qualquer preço, a atitude do Lars foi de pensar maior. Seus interesses pessoais eram maiores do que ter um Grand Prix no seu currículo, ele priorizou acima de tudo o critério da qualidade criativa no mercado e sobretudo a contribuição do prêmio para a indústria. Foi inesquecível.

Mas a história daquele ano não parou no Grand Prix. Após voltar para o hotel tarde da noite, completamente esgotado, passei muito mal, fiquei seriamente doente e não dormi. Aliás, fui apagar quase sete da manhã e só acabei acordando no susto, umas mensagens megaestranhas apareciam no meu celular, me perguntavam se era verdade que eu não estava na coletiva de imprensa do prêmio porque estava protestando contra alguma injustiça do jurado para com o Brasil. Quando vi aquela loucura pensei: “Meu Deus, o que é isso?”. Não tive dúvidas, botei uma roupa e saí correndo ao perceber que tinha perdido completamente a hora. Até me esqueci do motorista do festival que nos levava do hotel para o Palais. Saí correndo pela Croissete passando mal sob o sol e ao chegar lá peguei o último minuto da coletiva. O suficiente para não deixar nenhuma má interpretação estragar uma experiência tão incrível.

Para compensar toda aquela semana intensa de jurado, por fim acabei me isolando em St. Tropez e não fiz nada mais, nada menos, do que passar dois dias numa praia isolada nadando pelado e me recuperando para voltar ao mundo “normal”.

Hoje eu olho para trás e sem dúvida alguma concluo que naquele ano como jurado eu fiz parte de algo pra lá de especial, tanto profissionalmente como pessoalmente. Lá conheci o Matias Palm-Jensen, na época presidente do júri e que hoje por coincidência do destino é um dos meus melhores amigos fora do Brasil. Também conheci o Seb Royce, representante do Reino Unido naquele júri e que acabou sendo meu parceiro de trabalho quando me mudei para a Inglaterra. O Lars até reencontrei várias vezes em outros festivais, mas sinceramente nada foi mais memorável que aquele ano. A verdade é que Cannes é sempre uma caixa de surpresas. A química entre pessoas, épocas e culturas diferentes pode criar mais do que histórias, pode gerar aprendizados e experiências únicas e inesquecíveis.

*diretor-executivo de criação digital da JWT London