Histórias de Cannes: Sonia Regina Piassa

 

La vie en rose

Fui a Cannes muitas vezes, sempre para o festival de publicidade. Agora é mais parecido com a Feira de Caruaru, à qual fui uma vez só.

 

O tempo vai passando, a gente vai ficando mais velha e essas viagens já não são uma alegria como eram antes. Roupas, remédios, sapatos, chinelos… Tudo em mim é dobrado:  do alto dos meus três dígitos de peso, minhas roupas não são facilmente encontradas em nenhuma cidade europeia. Viajo sempre preocupada com minha bagagem.

Remédios tarja preta para dormir, Fluoxetina durante o dia, remédio para a hipertensão, o carvalho aquático… Tudo é mais complicado em caso de extravio de bagagem.

Com o passar do tempo, fui me permitindo certos luxos como não levar notebook, não levar roupa de festa, nem mesmo pra festa de gala. Sempre temos convites e lugares marcados, pois somos patrocinadores da categoria Craft.

Tento encarar Cannes como uma semana normal.

Até o ano passado, levava comigo uma pessoa para ajudar não só a carregar as malas, mas também nos serviços gerais lá em Cannes. Quem me conhece e conhece o trabalho da Apro/FilmBrazil sabe do que estou falando. Para quem não conhece vou fazer um resuminho.

Há 11 anos a Apro, associação da qual sou diretora-executiva, capitaneia o projeto FilmBrazil, que tem como escopo principal vender o Brasil como um polo produtor de filmes para os gringos, afinal temos de tudo aqui: sol o ano inteiro, diversidade étnica, excelentes profissionais e locações das mais variadas.

Então, nos últimos oito anos, montamos um lounge e ficamos lá durante uma semana. Falando assim parece moleza, mas não é não… Muita responsabilidade, muita correria e dificuldades de todo tipo. Diante disso, nada como uma boa ajudante, e daí eu decidi levar a minha empregada doméstica. Ela foi três vezes.

É uma moça bonita e exótica para os padrões europeus. Mulata, cheia de curvas e cabelo batendo na cintura, todo encaracolado. Uma mulher de sorriso fácil, que saiu dos confins do Amazonas, onde o vento faz a curva – oito dias de barco subindo o rio Amazonas até chegar no Solimões. Ela é acostumada com a língua castelhana, pois nasceu em uma cidade com tríplice fronteira. Fica no Brasil com Peru e Colômbia – ou seja, a moça tem fluência para falar com os latinos.

É melhor não usar o nome verdadeiro da figura e assim vamos chamá-la de La vie en rose. Ano passado fizemos uma escala em Londres na ida e ficamos por lá quatro dias. La vie en rose só queria saber de ir ao “pambi” (pub) e me pedia os  “palmis” (pounds) para pagar a conta. Divertida de verdade e muito paquerada pelos ingleses, coisa raríssima, com ela era “escreveu não leu, o inglês paga a rodada”.

Ano passado, La vie en rose não voltou para São Paulo. Resolveu que ia tentar a vida como empregada doméstica “nas oropa” de dia, e à noite faria programas, como as moças da casa da luz vermelha – afinal, o euro é uma moeda forte e ela tem o sonho de comprar uma casa.

Essa foi a desculpa: a compra da casa própria, já que, como doméstica, na minha casa, ela não conseguiria. E olha que ela ganhava muito bem, pode acreditar. Mas a verdade é que aqui ela é só mais uma. Lá, só vendo, ela é pedida em casamento em cada quarteirão.

La vie en rose ficou em Cannes. Deixou para mim apenas uma cartinha de despedida, largada sob a porta do quarto do hotel. Quando li aquelas linhas, minha aflição estava apenas começando. Ajudada por um amigo, fui fazer uma queixa na polícia. Achei mais sensato, afinal ela tinha carteira assinada e, na minha casa, duas crianças, uma de quatro e outra de nove anos – agora com cinco e dez.

Mas foi apenas uma cartinha que a “doida” me deixou com os filhos e uma irmã para substituí-la. As notícias que temos é que agora ela trabalha na casa do CEO de uma importante empresa lá no Sul da França. E continua com os programas noturnos para clientes fixos. Fala sério!!!

Ela nunca mandou um centavo para os filhos, mas eu tento provê-los de tudo que é necessário. Além do lado material, tento ser amiga, mãe e avó.

O que eu falei para as crianças quando cheguei? A mamãe ficou trabalhando na França para dar um futuro melhor para vocês. Ela vai voltar um dia.

*diretora-executiva da Apro (Associação Brasileira da Produção de Audiovisual)