Histórias provocam revoluções de costumes e comportamento
São 66 anos de novelas desde a primogênita, Sua vida me pertence, exibida na TV Tupi de São Paulo. De lá para cá, os folhetins fazem parte do dia a dia dos brasileiros, numa história única que se construiu somente no Brasil, com a magnitude e a potência a que chegou como produto de dramaturgia diária. Inspiradas pela própria sociedade brasileira e, em contrapartida, também capazes de inspirar e influenciar comportamentos, as novelas formam o caldo cultural e sociológico que permeia o cotidiano da grande maioria. Um interminável jogo de espelhos. “As novelas provocaram e retrataram a maior parte das revoluções de costumes que aconteceram no Brasil nos últimos 66 anos. São grandes fenômenos culturais e continuam importantes como sempre”, diz Washington Olivetto, CEO da WMcCann, que se inspirou no tímido professor Josué, interpretado por Marco Nanini em Gabriela, em 1975, para compor o Garoto Bombril, em 1978.
Cena de A Força do Querer, atual novela no horário nobre da Globo, que entrelaça histórias da diversidade de gênero
A via de mão dupla entre realidade e ficção é de fato potente, transforma a realidade e há inúmeros exemplos disso ao longo do tempo. Mulheres Apaixonadas, que abordou de maneira impactante o tema de maus-tratos a idosos, contribuiu para a aprovação do Estatuto do Idoso aqui fora, na vida. Indo mais longe no tempo, vale lembrar a contribuição de Escalada para a discussão sobre o divórcio (na época ainda não legalizado). Novelas são longevas – continuam sendo revistas interminavelmente em programas como Vale a pena ver de novo e canais como o Viva, da Globosat. No atual horário nobre, se entrelaçam as histórias de uma personagem travesti e outra que planeja fazer a transição de gênero, em A Força do Querer.
“A telenovela, com sua grande propagação em diversos setores da sociedade e por distintas mídias, tem como uma de suas características a apropriação da realidade como matéria-prima. Nela, realidade e ficção tomam formas cada vez mais parecidas, uma acaba inspirando a outra”, analisa Mauro Alencar, estudioso de novelas, doutor em teledramaturgia brasileira e latino-americana pela USP e autor de diversos livros sobre as novelas, como A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil.
Alencar descreve a telenovela como um gênero catalisador de outras linguagens – literatura, teatro, cinema. Técnicas são criadas e renovadas constantemente, temáticas do cotidiano são inseridas na ficção, utilizando como argamassa de construção a história do Brasil, além de ciências como a psicologia, a sociologia e a antropologia. Telenovelas impulsionaram a economia – por exemplo, com as vendas da televisão em cores a partir de 1973 – e amplificaram a “economia do entretenimento”. Mas seu maior valor, na opinião do especialista, é e foi a formação de uma identidade nacional para o Brasil.
“A novela contribui para diminuir as diferenças entre os diversos aspectos do complexo comportamento humano, pois com a riqueza de nossa telenovela, a despeito de nossa individualidade, podemos compreender que somos parte de um todo”, comenta.
Marcelo Silva, vice-presidente artístico da Record TV – que emplacou um novo gênero de novelas de grande sucesso, contando histórias bíblicas, afirma que o público aprendeu a se reconhecer na tela da TV – o que não ocorre, por exemplo, ao assistir filmes estrangeiros. “As novelas conseguiram explorar diferentes aspectos da vida do povo e acabam tão presentes que pautam as conversas, e até o noticiário do dia”.
Silvana Gontijo, presidente da PlanetapontoCom, especializada em inovação em educação, critica a visão carregada de preconceitos que rotulava as novelas como alienadoras e “o ópio do povo”, em especial as campeãs de audiência. “Como qualquer obra autoral, uma novela, uma peça de teatro, uma exposição de arte ou um livro pode ser boa ou ruim, aplaudida ou rejeitada, inovadora ou conservadora. Acho que as novelas, se prestam ou prestaram um desserviço, foi talvez o de nos mostrar o que não queremos ver e muito menos reconhecer como feio, em nós mesmos. Tem mais, a ideia de que fomos alienados por elas me parece uma visão extremamente desqualificante de nós mesmos. Como se seus críticos duvidassem da nossa inteligência e capacidade de avaliar criticamente o que recebemos”, afirma.