Inspiração: Conversas nova-iorquinas

Ela nem se dava conta que estava falando tão alto, ora subia o tom da voz, que alcançava um agudo quase insuportável, ora gargalhava a ponto de perder o fôlego e provocar uma tosse de cachorro. 

O cachorro que acabava de passar tão pouco se importava com a tosse da mulher ou com a mulher; seguia com sua postura altiva, autoconfiança de raça pura, malandragem de vira-lata, jogando charme para a cadelinha que vinha no sentido contrário. O charme funcionou e os dois bichos ficaram se cheirando, causando constrangimento aos respectivos donos. A dela, uma moça que não tinha mais que 25 anos, o dele, um rapaz de uns 30, magricela e com cara de assustado.
Depois de algumas voltas de coleira e várias outras cheiradinhas, os quatro se despediram e, ao mesmo tempo, notaram as duas moças que se aproximavam.

Divulgação

Imagem de Nova York

Seriam modelos? A da direita com certeza, pensou a jovem dona da poodle, que agora se coçava intermitemente enquanto sua dona notava a saia longa, a blusa elegantemente decotada, o cabelo preso em um nó no topo da cabeça e abrigava um belíssimo par de óculos escuros, tudo combinava tão bem naquela mulher. Modelo, com certeza.

A moça da esquerda também poderia ser uma modelo, mas não tinha a mesma classe. Usava um vestido branco, também longo, quase bonito. O rapaz, dono do cachorro pura-raça-vira-lata pensava diferente. Achou a mulher da esquerda muito mais interessante que a mulher da direita. Quando ambas se deram as mãos e se beijaram nos lábios ele seguiu seu caminho, assim como elas, assim como a moça do poodle, assim como a mulher ao telefone… bem, a mulher ao telefone não seguiu necessariamente o seu caminho, mas seguiu com a sua conversa.

Continuava a falar, a dar risada e a tossir, sem se importar com o que passava ao redor. Nem o calor, o sol escaldante de 38 graus, fazia com que ela parasse de falar. Num determinado momento, falou tão rápido que parecia que ia engasgar, mas tomou um gole de água de uma garrafinha de plástico meio amassada e continuou.

A garrafinha, apoiada na ponta do banco, tombou e rolou pelo chão, mas ela, mais uma vez, não se deu conta do que passava à sua volta. Lá se foi a garrafa, rolando até um casal de meia idade que passeava com uma mulher de uns 30 e poucos anos, turistas na certa. O homem parou o percurso da garrafa com o pé, a mulher e a outra moça, filha do casal talvez (?), seguiram a caminhada, deixando o elegante senhor para trás. 

Talvez por ser muito educado, talvez por se sentir na obrigação de ser civilizado enquanto visitava uma cidade tão moderna, o homem resolveu pegar a garrafa do chão. Examinou a embalagem como quem procura uma etiqueta com as informações do dono, essas que colocamos nas malas de viagem para o caso de se extraviarem, sempre esperando que nunca se percam, porque se elas se perderem poucas são as chances de conseguirmos resgatá-las; a não ser que isso ocorra na Suécia: lá, se a sua mala se perder, ela aparece na sua casa (ou hotel) no dia seguinte, intacta e entregue por um rapaz muito bonito e educado, que toca a campainha às 9 horas da manhã, exatamente no horário que a companhia aérea avisou que iria entregar.

Mas no caso da garrafa não havia nenhuma informação com dados para retorno com caso de extravio, portanto o cavalheiro olhou em volta para encontrar a lata de lixo mais próxima.
O som do navio passando ao fundo fez com que ele se virasse para o rio, para observar o gigante que dava ré(!). Ele se perguntou se era possível um navio de turismo conseguir dar ré, mas aí se lembrou que o navio é manobrado por uma outra barca, e quem o conduz nessas horas é um profissional chamado de “prático”, aliás há que se ter muita prática para mover um edifício flutuante cheio de pessoas que planejaram e sonharam com essa viagem por dias a fio. Assim como ele sonhou e imaginou viajar com sua mulher e sua filha (que seguiram a caminhada sem notar que ele parara); conhecer a cidade de Nova York e visitar os museus; caminhar pelas ruas e parques e observar os barcos e este navio passando no Rio Hudson, tudo tão limpo, nem um lixo no parque, só a garrafa de plástico, que ele jogou na lata de lixo, ao lado de uma mulher que falava sozinha sentada num banco, falava alto, gargalhava tanto que engasgava e tossia uma tosse de cachorro. Falava sozinha, é verdade, mas quem se importa, ele pensou, qual o problema de sentar num banco de parque e falar sozinha por horas a fio? This is New York!

Renata Florio é Global Group Creative Director da Ogilvy & Mather, com base no escritório de Nova York