Je suis Globo

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Stalimir Vieira

Quando eu era bem jovem, o meu pai dizia que as novelas da Globo eram uma encomenda da ditadura para manter o povo alienado da política. Mas, religiosamente, de segunda a sábado, sentávamos no sofá para assistir a novela. Fora desse horário, líamos A Voz Operária e debatíamos política.

Ainda na época, já trabalhando, tive um colega, filho de militar, que defendia a ditadura e dizia que as novelas da Globo eram uma invenção dos comunistas para corromper as famílias cristãs brasileiras. E que na casa dele jamais uma porcaria daquelas seria assistida. Hoje, acompanhando a saraivada de acusações à Globo, vinda de todos os lados, recorro àquelas aparentes contradições.

Por que a Globo virou o Cristo da vez, à esquerda e à direita, nessa crise sociopolítica e econômica? Porque é a Globo quem nos conta tudo o que a gente sabe. E o que a gente sabe não é bom. A Globo mostra que os políticos roubam. Que são todos farinha do mesmo saco. A Globo mostra que os preços estão subindo e o desemprego está aumentando. A Globo mostra que a criminalidade está virando uma epidemia e o tráfico de drogas tem o controle de certas regiões no país.

A Globo mostra a falta de verba para a saúde, para a educação e o desperdício de dinheiro público em obras inacabadas. A Globo mostra a presidente atrapalhada, mostra a oposição incompetente, o Legislativo negociando maracutaias e o Judiciário, pasmem, dividido na definição de legalidade. Enfim, a Globo é um poço de más notícias, alimentando o nosso mau humor todos os dias.

Essa é a verdadeira e histórica culpa da Globo. Se a Globo tem interesses escusos? A Globo tem os interesses que qualquer negócio tem e deve estar sempre empenhada em atendê-los. Interesses que eu tenho, que você tem. O que cada um de nós faz, em defesa de seus interesses, cada um de nós sabe muito bem o que é. E, certamente, nem sempre nos orgulhamos. Desde o cidadão mais simples até o megaempresário.

A família Marinho tem uma enormidade de dinheiro? Certamente. No lugar deles, qualquer um de nós teria. Mas é dinheiro suficiente para comprar o que quiser? Sem dúvida, o que quiser e, provavelmente, quem quiser. Mas isso não é bacana, comprar as pessoas. Também acho, mas bem que eu gostaria de ter recebido uma grana da família Marinho para escrever este artigo em defesa da Globo. Não me sentiria culpado por isso. Como não me sinto culpado por nada do que eu faço. Porque culpa é um conceito muito relativo, que pressupõe uma consequência negativa causada por uma decisão unilateral. E isso é muito raro.

O comum é sermos todos cúmplices uns dos outros. Como somos cúmplices da Globo, como a audiência toda é cúmplice da Globo. Somos todos cúmplices na geração e na exposição do nosso fracasso, da nossa incapacidade para superarmos os nossos defeitos e evoluirmos como cidadãos. Porquê? Porque nos locupletamos do deserto ético em que nos criamos e vivemos. A Globo, enfim, somos nós, sem tirar nem pôr. Toda essa acusação histérica não passa de uma inútil tentativa de expiação.

Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing