Lições de Bob Garfield
Crítica, substantivo feminino: a arte, capacidade e habilidade de julgar, de criticar. E quem possui essa quase divina habilidade? A quem pertence, no mundo da polifonia, o poder ou o direito de avaliar minuciosamente o outro? No artigo da semana passada (Gente boa também erra a mão, edição 2629), o publicitário Stalimir Vieira analisou criticamente – e elegantemente, devo dizer – a campanha do Ministério dos Transportes. Conversamos a respeito e nos perguntamos por que não existem colunas de análise de estratégias de comunicação nos moldes da saudosa (não para todos, certamente) do jornalista Bob Garfield, que durante 25 anos avaliou no Ad Age estratégias de publicidade, distribuindo (ou não) concorridas estrelinhas. Garfield tornou-se a pessoa mais odiada do universo da propaganda americana. Era respeitado, temido, aplaudido e admirado, de acordo com o tom da coluna a cada semana.
Por que deu certo? Ele mesmo me conta. Em primeiro lugar, não era publicitário. Críticas de publicitários podem ter intenções ou interesses não declarados. Ele morava em Washington, longe do centro nervoso da publicidade americana, e nunca frequentou eventos do mercado (com exceção de Cannes, em anos mais recentes) ou se relacionou de maneira mais próxima com as pessoas da área – pré-condição fundamental para o crítico. Sua função era full time, num tempo em que jornais como o Ad Age e a revista Adweek podiam se dar ao luxo de manter profissionais fazendo apenas isso: avaliando o trabalho da publicidade. Por sinal, a coluna de Garfield nasceu como resposta à coluna de Barbara Lippert, adweek critique, na concorrente Adweek, que estava bombando.
Foram mais de 1.200 colunas. Ele “matou” a campanha Always and Only, da Coca-Cola. Provocou perdas de contas e de empregos e quase levou um soco, em Cannes, de um diretor de criação por ter criticado uma estratégia da Pepsi. Detonou um comercial racista veiculado pela rede de lojas de tênis Just For Feet contribuindo (com o NYT) para a falência da empresa – por sinal, Garfield elegeu este como o pior erro de marketing já cometido até hoje por uma marca. Previu e acertou que um conceito de Corona tinha fôlego para durar 25 anos. Se arrepende de ter dado apenas três estrelas a Just Do It, de Nike, no lugar de quatro. Também lamenta ter criticado a vencedora estratégia I’m Lovin’ It, de McDonald’s. Se desse três ou quatro estrelas, era comparado a um gênio. Qualquer coisa abaixo disso, guerra. Sua média ao longo dos anos foi de 2,4 estrelas, o que, segundo ele, demonstra que elogiou mais que criticou.
Ele comenta que nunca se divertiu na função porque não se acostumou ao efeito de suas palavras no mundo real. Mas procurava lançar mão de argumentos lógicos e consistentes, com base nos resultados das estratégias. Um bom crítico nunca elogia ou xinga – é o mesmo que “peidar em público”, ele diz. Há uma desapaixonada e contextualizada lógica na sua análise, sempre.
Por que acabou? Porque pós-revolução digital os comerciais que ele analisava perderam a relevância, em sua opinião, os modelos de negócio mudaram e hoje as pessoas podem “pular” os comerciais. Ele continua dando seus pitacos principalmente no programa On the media, na rádio WNYC. E conta o que o surpreendeu, ultimamente: “Com um mix de mentiras, um pouco de racismo e assédio sexual, você pode eleger um presidente nos Estados Unidos”.
De uma forma ou de outra, tenho a sensação de que a publicidade era mais interessante com a coluna de Bob Garfield.
Claudia Penteado é jornalista e repórter do PROPMARK