Lisboa e as pessoas

“O digital é ferramenta. O que realmente importa são as pessoas, as pessoas e as pessoas”. A fala é de Marcelo Rebello de Souza, no discurso do encerramento do Web Summit 2021.

Muitas vezes aquilo que não é dito indica mais tendências do que a pauta principal do evento. Neste Web Summit em Lisboa, agora em novembro, não se discutiu muito ou quase nada sobre carros voadores, óculos de realidade virtual, impressoras 3D ou alguma empresa unicórnio.

70 mil pessoas de alto nível técnico e de múltiplos talentos estiveram juntas para um certo “freio de arrumação”. O mundo da tecnologia e inovação está amadurecendo, antes que fiquemos sem mundo para inovar. Não tem unicórnio se não tiver gente. De que adianta apps revolucionários se não há sanidade mental para usá-los. E de que adianta tanta tecnologia para um futuro melhor, sem um futuro para o mundo? Na verdade, o mundo não acaba, nós que podemos acabar enquanto o mundo se refaz.

Talvez esse pensamento que não se disse, claramente, mas que percebi como subconsciente do evento, seja fruto de 15 meses do pesadelo da Covid. No Web Summit, nas palestras e pitches, se falou muito sobre responsabilidade com as pessoas, respeito ao ritmo de trabalho remoto ou híbrido e o inescapável ESG. Em uma palestra na grande arena, tentaram arrancar da responsável pela Magic Leap, empresa que nunca abandonou o desenvolvimento de óculos de realidade virtual, quando a tecnologia estaria no nosso dia a dia: alguns anos, talvez. Quase ninguém acredita mais em cortinas de fumaça de PR e o ponto é: o que vamos fazer para realmente melhorar a vida que levamos, a degradação de nossos sistemas políticos e o mundo real que vivemos?

Parece que os garotos daquelas garagens que criam coisas incríveis e poderosas estão saindo da adolescência e entendendo que possuem algumas responsabilidades.

Vi apresentações de algumas startups de tecnologia sobre saúde; sobre como podemos aproveitar os recursos que já existem e muitas empresas com foco em soluções para problemas reais. Algumas delas não terão escala e não serão vendidas por milhões de reais. Mas estão lá resolvendo problemas.

Em comunicação, ficou clara a intenção de sair da era das commodities. Existem milhares de empresas desenvolvendo tecnologias de inteligência artificial semelhantes entre si. E existem outras milhares que copiam essas inovações e oferecem o mesmo serviço mais barato e cada vez mais automatizado. Como ser mais valioso? Como ser útil? Como ser visto e considerado? Como se comunicar com menos robôs e de maneira mais humana? Ouvi palavras como consistência, longo prazo, maratona e não 100 metros. Olha só!

Depois de três dias de assuntos não ditos e de perceber nas entrelinhas esse novo foco, assisto ao discurso final do presidente de Portugal no Web Summit que, emocionado, disse a frase que abre esse texto. Saio da grande arena como tantos ali saíram, com bastante combustível para um ano que vem aí repleto de desafios. O Uber me deixa no Cais do Sodré na baixa lisboeta. Embarco no comboio para Cascais e, com o ritmo do vagão e um pôr do sol de outono, os pensamentos vão passando também. Desliguei o celular.

Flavio Waiteman é CCO-fundador da Tech and Soul (flavio.waiteman@techandsoul.com.br)