Lula Vieira: Cony, jornalismo e flanelinhas

Carlos Heitor Cony, um dos meus ídolos, é colunista da Folha e faz dela uma aula do melhor jornalismo a cada vez que é publicada.

A coluna do Cony, por si só, (tem outros, sem dúvida, mas estou falando dele) mostra qual o papel do jornal, ainda que eletrônico. Um jornal serve para ordenar as informações que recebemos a cada instante e propor reflexões sobre suas conexões e efeitos.

No mundo de hoje nós recebemos gratuitamente a grande maioria das notícias. O rádio, a televisão e a internet estão aí para disseminar tudo que acontece em qualquer lugar do planeta. Sem gastar um tostão, qualquer um de nós sabe dos fatos e dos boatos na medida que acontecem ou são criados.

O que faz o Cony? Mostra que os jornais existem para dar sentido a essas informações e nos ajudar a ponderar sobre suas consequências em nossas vidas e na vida da sociedade. Gente como o Cony demonstra com clareza porque devemos pagar pelos conteúdos que recebemos.

Estou falando nisso porque a última coluna do Cony, que pode parecer apenas uma recordação de infância, me ajudou a entender muita coisa sobre algumas questões importantes no nosso cotidiano. Cony escreveu sobre sua perplexidade em descobrir que os funcionários da Estrada de Ferro Central do Brasil e os da Estrada de Ferro Leopoldina tinham profunda rivalidade, a ponto de resvalar para o desprezo.

Nada concreto ou, pelo menos, nada que pudesse justificar a ideia de que se tratavam de pessoas de diferentes espécies, incapazes de se sentirem iguais. Os da Central referiam-se aos da Leopoldina como oriundos de uma raça inferior, verdadeira gentalha no universo ferroviário.

Já os da Leopoldina viam nos colegas da Central a própria casta aproveitadora de benesses oficiais, privilegiados aproveitadores de mordomias laboriais. Em palavras de hoje, eram a elite dos operários. Os coxinhas e os trabalhadores sacrificados.

Extrapolando para qualquer coisa, depois de ler o Cony, confesso que vi Jesus. Aleluia! Nós somos assim. Pela absoluta necessidade de nos juntarmos em tribos, criamos turmas que se identificam e estabelecemos os inimigos que lhes dão validade. 

Outro dia vi este fato dramatizado numa crise de energia no centro da cidade. Eu estava num elevador que subia. Os elevadores pararam e todos os passageiros se reuniram num andar intermediário.

Um dos meus companheiros de elevador depois de alguns minutos se referiu a um grupinho que se aglomerava num canto como “a turminha que estava descendo”.

Se demorasse mais um pouco a crise de energia, eu estaria participando das críticas aos filhos da puta da turma que desce. Em nome de defender uma causa como a redução da idade penal nós somos capazes de bater em velhinhas que não concordam com isso.

Agora são os ciclistas que acham que, pelo simples fato de pedalarem pelas ruas, se sentem no direito de ultrapassar o sinal dos pedestres, tratando tudo o que não se move em duas rodas como seres desprezíveis.

Para eles, o simples fato de eu estar num carro cria um abismo entre um merda, absoluto empesteador do meio ambiente, e um atleta atentado com a sustentabilidade, portanto dotado do supremo direito de dominar a rua.

Claro que não o faz, porque um truculento mau caráter motorista de ônibus coloca-o no devido lugar e ensina que pode mais, quem dirige massa maior. E os vegetarianos então?

Com exceções respeitáveis e meritórias como as de alguns amigos vegetarianos, boa parte deles, como aderiram à ideia (justificável, vá lá) de que comer carne tem comprometimentos éticos e de sustentabilidade, me tratam como um criminoso a cada vez que como uma picanha.

Depois de ler o Cony, e voltando ao início deste texto, eu vou parar de falar ironicamente de quem participa de excursões tipo 48 cidades da Europa em 12 dias, de quem gosta de comédia brasileira no cinema, de quem anda com garrafinha de água na rua. Só não vou dar mole para flanelinha. Esse é outra raça. Esse eu odeio. Compreensão tem limite. Desculpe, Cony.