Lula Vieira: O casamento da Preta
Como cheguei muito cedo, e era por volta da hora do almoço, resolvi fazer um lanche num dos inúmeros botequins das redondezas, lugares tradicionais de boa e sincera comida popular. Bares e botequins ainda com garçom de gravatinha ou avental, com balcão expositor oferecendo pernil, carne assada, coxinha de galinha, rissoles e tira-gostos refinados como sardinhas fritas ou sanduíche de bife à milanesa.
No caixa, o proprietário, olhar atento, vigiando os potenciais riscos à saúde financeira da casa: freguês que não paga e garçom que faz mutreta. Percorri uns três ou quatro, procurando o estado-da-arte, uma soma de mercadoria exposta, decoração, quantidade de fregueses e a atmosfera geral do estabelecimento. Nem tão limpo que sugira lanchonete de comida dita saudável (o horror! o horror!) nem tão imundo que revele negligência.
Finalmente me abanquei num deles, decorado com extremo bom gosto mas com dignidade, geladeiras imensas de porta de madeira, balcão de mármore e a garantia da presença de pessoas de todos os tipos atracadas com prazer a pratos do dia (rabada com polenta, carne assada com arroz, galeto com salada e assim por diante) ou sanduíches no pão francês: carne assada, lombo, queijo minas derretido, salaminho. Pedi um sanduíche de lombo assado, acompanhado de saladinha de cebola e alface e comecei a apreciar o ambiente.
Gente fina, pouquíssimas pessoas teclando o celular. Os em grupo conversavam entre si. Os sozinhos apreciavam a comida e a vista, praticantes do tradicional esporte de pensar na vida. A inteligência do marketing moderno que criou a garrafinha de vinho contendo uma taça permitiu o acompanhamento ilustre: um Malbec de boa estrutura, capaz de fazer pendant com a forte presença da carne ricamente temperada. Coisa de fresco.
Sem nenhuma homofobia, pois tenho certeza que é possível ser homossexual sem frescura. E o contrário, como garanto que é meu caso. Voltando ao boteco: o assunto dominante entre as mesas era o casamento da Preta Gil e do cara que casou com ela (nenhum circunstante tinha a menor ideia de quem era o marido de Preta – sabia-se apenas que era personal trainer).
Não que os executivos de mercado de capital, os caixas de banco e as analistas de marketing e de investimentos, assim como vendedores das redondezas, estivessem muito ligados aos acontecimentos mundanos. É que a cerimônia religiosa foi de tal monta que parou o centro da cidade, com direito a sinalização própria e bloqueio de ruas e estacionamentos. Falava-se do transtorno, de ostentação e de exageros.
Como Preta e seu pai são queridos pelas pessoas, não se falava muito mal. Apenas se criticava o excesso, como se ambos não precisassem desse tipo de mico. Um senhorzinho resumiu em voz alta sua abalizada opinião: “Pelo menos não é dinheiro do povo, o Gil ganha muito dinheiro. O feio é quando é festa de político ladrão que, além de tudo, goza da cara da gente”. Alguém lembrou que foram gastos na festa de 12 horas de duração 400 garrafas de champanhe francês, 70 de uísque e 44.000 docinhos.
Um garçom, cujo primo trabalhou na recepção, que também parou Santa Tereza, informou que tinha “para mais de 150 garçons” e que de coquetel e jantar foram servidos mais ou menos cinquenta pratos diferentes. Nisso ele exagerou um pouco, as reportagens deslumbradas do dia seguinte apontavam apenas 27 pratos, coerente com os dias de contenção que vivemos.
Tinha gente que leu em algum lugar que cada convidado, e foram 700, pois a família resolveu restringir a cerimônia aos íntimos, ganhou lembrancinhas muito bacanas, sendo que os 56 padrinhos receberam um gracioso mimo que custou 800 reais.
Após o silêncio que se seguiu à revelação destes números, diretamente de uma mesa perto da porta do banheiro, um freguês calçado com tênis surrados e uma camiseta de cor indefinida não permitiu muitas críticas ao pai da noiva. Disse ele: “Eu também tenho uma filha meio porra louca. O dia que ela casar gasto o que eu posso e o que eu não posso numa festa“.
Ele entendia Gilberto Gil. Afinal, também era pai.
* lulavieira@grupomesa.com.br