Lula Viera: Remexendo o baú
E foi nessa atividade que um dia recebeu o pedido mais estranho do mundo: benzer e afastar maus espíritos que rondavam a TV Manchete no início de sua decadência. O incrível foi o autor da ideia: nada mais nada menos que o “seu” Adolfo Bloch, judeu da mais fina estirpe. Judeu, mas brasileiramente realista.
Benvindo aceitou a incumbência, embora fosse uma tarefa complicada realizar todos os rituais necessários de forma discreta, como fora recomendado. Acender velas, rezar, cantar, dançar, tudo isso com um grupo enorme de auxiliares devidamente vestidos, não seria fácil de fazer sem chamar a atenção do bairro inteiro. Mas valia tentar.
Numa madrugada, um ônibus depositou na sede da Manchete, na Rua do Russel (Glória, zona central do Rio) numerosos instrumentistas, mães de santo e Benvindo Siqueira, além de farta provisão de comida, bebida, pólvora e animais alados e terrestres, todos destinados a abrilhantar a cerimônia.
As rezas começaram na rua e prosseguiram pelo edifício, até chegar nas salas da diretoria, onde, para admiração de todos, “seu” Adolfo foi um dos mais entusiasmados passistas. Com o rosto mais sério do mundo, murmurando os pontos da macumba, ajudou a oferecer aos Orixás as pipocas rituais. Um exemplo de ecumenismo.
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Quando lançamos “Tocaia Grande” para a TV Manchete, depois do sucesso maluco de “Pantanal”, resolvemos criar uma imagem bastante ousada, pois tínhamos detectado que o clima de sensualidade das novelas da Manchete era um filão muito bom, agradando ambos os sexos.
Como a novela era de Jorge Amado, utilizamos o mesmo traço de Carybé, seu maior e mais querido ilustrador, mostrando uma mulher totalmente nua, de frente, com o indisfarçável triângulo de pelos pubianos chamando uma enorme atenção, viva mancha preta num corpo dourado.
“Seu” Adolfo mandou mudar umas dez vezes a exposição da nudez da mulher-símbolo da novela, ao sabor de ataques de medo. Colocamos um pano sobre suas ancas para disfarçar a zona do agrião, viramos ela mais de lado, até mesmo tentamos tapar a visão mais perigosa com um coco. “Seu” Adolfo sempre ficava com medo da censura e pedia mais discrição. As emendas a cada mudança pioravam o resultado. O ilustrador, cada vez que era chamado para alterar o desenho, fazia um escarcéu, pois o que parecia fácil demandava quase que começar tudo de novo, um penoso e detalhista trabalho com os pincéis.
Numa dessas reuniões angustiantes, em que o pessoal jurava que era a última vez que pediam modificação, nosso artista perdeu completamente a paciência e entrou na minha sala, onde eu recebia uma gerente de banco disposta a aumentar a minha linha de crédito, e berrou:
– Lula, vou te avisar uma coisa. É a última vez que retoco aquela boceta!
E saiu batendo a porta, me deixando com a tarefa de explicar para a gerente o que significava aquela ameaça.