Marcas acertam a narrativa da comunicação durante a pandemia
O PROPMARK completa 56 anos no dia 21 de maio e sela a data com esta edição histórica. Marcas que integram um consórcio da Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade (InvestSP) para a construção da nova fábrica de vacinas do Instituto Butantan participam com matérias especiais ao lado de artigos assinados por autoridades em branding, que analisam o papel da comunicação na pandemia da Covid-19. Este especial também traz reportagens envolvendo agências e veículos de comunicação.
O contexto remete à mensagem que o médico norte-americano Hunter Doherty “Patch” Adams espalha ao pregar o cuidado com o próximo. Em 1998, a história do fundador do Instituto Gesundheit virou um filme que vale a pena ser revisto pela sua capacidade de motivar atitudes solidárias – como fizeram as marcas – e de sorrir mesmo diante de tantas adversidades.
“O sorriso cura, desopila o fígado, faz bem para a alma. Se isso é uma característica de sua marca, não o desperdice”, sugere Beto Almeida, CEO da Interbrand. Mas o executivo alerta que esse atributo não pode ser banalizado. “O que chamamos de ‘bom gosto’ é subjetivo. Escute seu consumidor, crie com ele, e aprenda os limites a partir dessa troca”, acrescenta.
Mesmo de um jeito mais leve é possível transmitir orientações importantes. “Vi muitas empresas fazendo brincadeiras em relação ao uso da máscara, no sentido de apresentar críticas às pessoas que não as usavam”, observa Marcos Facó, diretor de comunicação e marketing da FGV.
O especialista acredita que a abordagem é pertinente, pois faz uma crítica suave a quem não vinha respeitando as recomendações das autoridades sanitárias. “Mas essa comunicação precisa ser bem feita, bem redigida e ter o tom certo”, orienta.
A professora e pesquisadora na área de estratégia e marketing da Fundação Dom Cabral, Luciana Faluba, concorda. Marcas irreverentes podem usar a sua criatividade para tratar uma questão sensível, porém, com a seriedade que o tema exige.
“Isso não significa perder a sua identidade, e sim adequar o tom da comunicação. Não precisa tratar de temas sérios o tempo todo. Em outras abordagens, é até recomendado seguir o tom bem-humorado se essa for a ‘pegada’ da marca”, avalia Luciana, lembrando que as mídias sociais requerem uma linguagem mais descontraída.
Já Fábio Mariano Borges, da ESPM, é taxativo: “Não é hora de fazer graça nem piada”. Segundo ele, a marca pode ser irreverente manifestando solidariedade. O professor lembra que na queda das Torres Gêmeas nos Estados Unidos, em 2001; no tsunami da Tailândia, em 2004; e nos desastres ambientais de Mariana, em 2015, e de Brumadinho, em 2019, ambos em Minas Gerais, as marcas conseguiram expressar apoio às vítimas.
“Esse assunto não deveria ser novo para nenhum gestor de marca. Quem diz nunca ter vivido isso, que não sabe o que fazer, denota inexperiência e falta de conhecimento histórico, pois já tivemos muitos momentos trágicos em que as marcas souberam se manifestar”, pontua.
Sem conversa fiada
A decisão não é fácil. Entrar na conversa e correr o risco de soar falso ou não se manifestar e parecer indiferente são os dois lados de uma moeda que ninguém quer encarar.
Nem cara nem coroa, o processo de mudança na comunicação das marcas passou primeiro por uma etapa de reflexão, seguido por informação, atitudes ligadas a doações e depois assumiu um caráter emocional onde os valores institucionais se ligaram aos sentimentos das pessoas, já extremamente exaustas com o distanciamento e a sobrecarga de funções do home office.
“A marca deve estar conectada com a realidade. Jamais demonstrar omissão ou alienação e, ao se comunicar, não pode demonstrar insensibilidade”, reitera Fernando Trevisan, diretor da Trevisan Escola de Negócios. Um dos poucos ambientes de manifestação no momento, as redes sociais também demandam atenção redobrada.
Rapidez foi fundamental para entender o momento da pandemia e “mudar campanhas que estavam em andamento, mas que refletiam uma realidade anterior, que não existia mais”, repara Facó.
Algumas empresas já estavam preparadas. Neste grupo, Borges inclui o Magazine Luiza, Natura e O Boticário. Outras tiveram de deixar a resistência de lado e apressar a transformação. “A maioria adotou um tom mais solidário e humanizado, falando mais sobre as pessoas e menos sobre elas próprias. Isso já era uma tendência prevista, e foi acelerada pela pandemia”, analisa.
Beto Almeida endossa essa percepção. Em seus estudos, a Interbrand percebeu evoluções na maneira como as empresas não apenas mudaram a abordagem de suas campanhas nos últimos anos, mas sim toda a sua estratégia de comunicação. E a pandemia não foi o único componente.
Problemas sociais, econômicos e ambientais também estão transformando o papel das empresas diante da sociedade. “Estamos, enfim, entendendo a necessidade de mudar a maneira como tratamos o planeta, que precisamos evoluir em todas as questões sociais no que diz respeito a raça, etnia e gênero se quisermos ter um futuro mais justo”, confirma Almeida.
Mais do que uma mudança no tom, houve uma adequação de prioridades estratégicas guiadas por empatia e confiança.
Novo jeito de comprar
Sob bases refeitas se ergue um novo momento de consumo, que tem no digital a sua escora mais forte. “Em um determinado momento, as vendas presenciais caíram quase a zero, e as pessoas perceberam que tudo o que quiserem e todas as informações necessárias estão, literalmente, na palma da mão”, contrapõe Facó.
Rankings e recomendações de produtos e empresas na internet e nas redes sociais ganharam evidência na pandemia, transformando o boca a boca e as indicações. “Surgiu a necessidade de se adaptar a essa linguagem, que difere da presencial, do ponto de venda”, frisa Trevisan.
A comunicação mais humana e próxima de uma conversa é que será capaz de integrar as pessoas aos produtos. O ambiente de negócios mudou muito rápido e as empresas ainda estão aprendendo. “Acredito que é uma questão de tempo para que toda a potencialidade seja aproveitada”, emenda Luciana.
Seja no consumo ou na adoção de hábitos mais responsáveis, o aprendizado virá com o tempo. “O papel de toda marca é mudar o mundo para melhor. A iniciativa privada tem muito mais poder do que qualquer governo ou governante”, reforça Almeida.
Neste contexto, a relevância de agências e marcas vem da geração de conteúdos capazes de levar apoio às pessoas. Mostrar coerência também é fundamental. Não adianta anunciar investimentos vultosos em mídia se a companhia passa por uma fase de demissões. “O público está atento”, avisa Trevisan.
Orgulho
Pertinência, empatia e adequação nunca foram tão essenciais em meio aos sentidos de sobrevivência e colaboração evidenciados por um momento de tanta vulnerabilidade. Trevisan cita a atitude da Nike, que soube abraçar os consumidores ao reforçar a mensagem de distanciamento por meio de uma campanha de incentivo à prática de atividades físicas em casa.
Não há lugar para oportunismo. “As empresas ficaram expostas e suas marcas foram colocadas em xeque. A forma como responderam foi analisada, julgada, e aquelas movidas por propósitos transformadores se sobressaíram por sua conexão com a sociedade, agilidade e criatividade”, destaca Luciana, mencionando a postura adotada pelo Magazine Luiza.
A varejista viabilizou o e-commerce para uma série de empresas que ainda não estavam digitalizadas, trazendo esperança de sobrevivência e reforço ao próprio ecossistema de negócios. “A marca desenvolveu ações em prol da sociedade, mas não só isso. A sua estratégia revelou uma preocupação social genuína”, comenta Luciana.
Da empatia vem o exemplo do Itaú citado por Beto Almeida. O banco enviou um e-mail aos seus correntistas ensinando como se cadastrar no Sistema Único de Saúde (SUS) para tomar a vacina contra a Covid-19. “Uma ação que não vai trazer nenhum correntista a mais, porém, está intrinsecamente conectada a dar ao banco um papel transformador na sociedade em que vivemos que, por sinal, está ligado ao propósito da marca”, sublinha Almeida.
Apesar de simples, o e-mail ganha poder pela sua origem. “Receber esta ação de um player da área da saúde seria o esperado, mas foi um banco que tomou a iniciativa de ajudar na jornada de saúde nesta pandemia”, compara.
No papel de informar e orientar as pessoas, o consultor ainda ressalta as lives da Brahma, que levaram entretenimento e ajudaram as pessoas a ficarem em casa, além de ações da Sul América, que doou sessões gratuitas de apoio psicológico às famílias que foram devastadas pela Covid-19.
Dentro de cada segmento, Facó considera que as empresas fizeram a sua parte. Aplicativos de entrega, como iFood e Rappi, por exemplo, prestaram um papel social e de conscientização, evitando deslocamentos e instruindo os cidadãos sobre a limpeza das compras. “O Uber começou a fazer entrega de produtos, colocou divisórias nos carros, e aumentou o rigor da higienização. Os restaurantes separaram as mesas, controlaram a capacidade e orientaram sobre o uso de álcool”, enumera o professor da FGV.
Sinceridade
Clareza de propósito é a principal recomendação dos especialistas em branding, que vão além. “O posicionamento de mercado deve refletir o que a marca entrega, de fato, para a sociedade”, explica Luciana.
Para Facó, não se deve alterar a gênese da marca devido à pandemia, e sim adaptar a comunicação e o discurso às necessidades que rondam o cliente. Até mesmo não falar nada pode ser uma estratégia. Primeiro, para afastar intenções oportunistas. “O público consegue identificar isso facilmente e rechaça esse comportamento”, adverte Facó. Segundo, na tentativa de afastar interpretações largadas à mercê de pensamentos hostis e polarizados.
Refém de um governo que nega a ciência, o brasileiro viu o país se transformar no epicentro da Covid-19 um ano após a oficialização da pandemia, em março de 2020. “Atualmente, as tensões que as redes sociais trazem, principalmente no campo político, fazem com que as marcas reflitam muito antes de se manifestar”, pondera Facó.
Além de recrudescer o colapso sanitário, a politização do surto do coronavírus interferiu na comunicação de muitas empresas, que acabaram ficando mais receosas ao fazerem comentários ou aparições.
Sinal de apoio ou desaprovação política? Respostas extremistas atrapalham. “Não falar pode soar em um primeiro momento como indiferença, mas o silêncio não deixa de ser um posicionamento”, defende Facó.
Na opinião de Luciana Faluba, não vale a pena correr os riscos intrínsecos à reputação da marca, especialmente devido à capacidade incendiária das redes sociais. “As mensagens devem ser submetidas a uma prova de interpretação como medida preventiva antes de serem veiculadas porque o custo para reverter os danos podem ser imensos”, aponta a especialista.
Princípio básico da teoria da comunicação, o pré-teste é uma técnica consagrada por garantir que a mensagem seja entendida. Não há desculpa para más interpretações. “Só tem um nome para isso, que é incompetência”, esclarece Borges.
Além das palavras
Forçar vantagens comerciais por aumento de preço ou pressão de vendas, enquanto famílias perdem vidas, empregos e renda não condiz com uma postura responsável. “Qualquer ação fora do ambiente da marca e do contexto pode ser mal interpretada e gerar prejuízo de imagem”, diz Trevisan.
O momento é de olhar para as pessoas, “mas as marcas relutam em entender que são coadjuvantes neste processo”, indica Borges. Nunca é demais lembrar que atitudes valem mais que palavras. “Faça antes e comunique depois. O consumidor é muito mais exigente e conectado, e uma falsa promessa coloca em risco a sua reputação em questão de segundos”, salienta Beto Almeida.
O propósito de marca puxa o fio que alinha as ações internas e externas das empresas. Só se enrola quem “não conhece a causa, está preso na big idea, está tentando ganhar Leão de Ouro em Cannes ou ser a propaganda viral”, critica Borges.
No entanto, se a manifestação é autêntica e preocupada com as pessoas, deve ser feita. “Quem fala de pessoas é relevante. O risco de soar falso é para quem é falso”, constata o professor da ESPM. Marcos Facó leva a bronca adiante. “As agências poderiam ter participado mais ativamente. Faltou liderança no sentido de aglutiná-las em torno do tema”, afirma.
O especialista da FGV reconhece a execução de algumas iniciativas com caráter informativo, mas lamenta a ausência de “um contingente maior de agências e veículos para passar uma mensagem mais coesa e unificada”, insiste.
Fica a lição. Sentimentos, emoções e valores associados às marcas afloram em um momento de inflexão sem precedentes. Não há volta. Comunicação é conversa, e não comunicado. Ela muda ao passo que o comportamento humano evolui. Ensina, dá alternativas, diverte. E vai além da campanha.
Combinados, criatividade, integração, dados e personalização formam a base do trabalho que as agências devem construir para elevar o conteúdo dos clientes. “O contexto de amparo às pessoas passa a ser primordial”, conclui Trevisan.
Resiliência e generosidade ganham importância em uma nova era, quem sabe, capaz de convencer a humanidade a fazer como John Lennon e “imaginar todas as pessoas vivendo a vida em paz”.