O título deste artigo é o de um livro do Rollo May, um notável estudioso da alma humana que em muitos momentos abordou a criatividade como essencial e inerente ao ser humano. Sempre fui curiosa com as profundezas da criatividade: como ela chega, cresce e move as pessoas. Como faz sofrer, desconcerta e angustia. Como traz recompensas ou deixa no limbo quem a procura, incansavelmente. Aprendiz nessa vida, sigo estudando o tema, lendo e, principalmente, ouvindo pessoas, gente que se vale da inventividade no trabalho, por exemplo. Gente que sustenta no peito ou no cartão de visitas o título de “criativo”, tomando como função profissional a invenção, a busca pela singularidade. Devo confessar que frequentemente enxerguei essa gente com um misto de inveja e desdém – às vezes me pareceram brilhantes, outras pretensiosas, e outras, ainda, enganadoras. Às vezes um misto das opções anteriores…

O fato é que ser criativo é o que nos torna humanos: a criatividade é a expressão da nossa existência, conforme define Rollo May. Criar é um ato de impetuosidade, de risco. Há algo nisso que não se vincula ao racional, embora milhares de informações racionais possam servir de ponto de partida para invariavelmente se misturarem a uma bagagem pessoal e inconsciente, que não está gravada como bits e bites em cadeia organizada. Criar é fruto dessa amalgama, desse imenso caldeirão de sabores, referências, vivências, paixões. Mas o ato de criar é também o que nos revela imperfeitos, nos frustra, pode levar ao desacerto, ao engano, ao erro. O erro nos incomoda, nos enraivece, nos faz vulneráveis, nos tira da zona de conforto – e nos empurra, nos move. Erros e dor costumam ensinar mais do que os acertos. E, ultimamente, são eles que a humanidade parece querer evitar a qualquer preço. Não é por coincidência que vivemos a era do Prozac, do Rivotril e da Ritalina. Tomamos remédios para dormir melhor, fazer sexo melhor, ter mais disposição para trabalhar e malhar, ter corpos mais esculturais, para nos sentirmos mais felizes. Tudo o que falha e nos torna humanos, se tornou “out”. Não é coincidência que produzimos uma nova geração inteira – os nossos millennials – que não aguenta sofrer e tem na defesa do conforto o seu discurso central. Como escreveu a Eliane Brum num artigo recente: é uma geração que foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor. Criar, a partir da dor. Por um instante, parecemos falar da mesma coisa.

É o valor da própria humanidade que entra em jogo quando ingressamos no vasto território da Inteligência Artificial – ao imaginarmos que ela, a IA, pode nos substituir naquilo que nos configura mais essencialmente: a coragem de criar. Sinto um frio na espinha todas as vezes que me deparo com as discussões sobre Inteligência Artificial e suas muitas possibilidades… criativas. Quando aplaudimos, como bonecos, máquinas que recombinam informações aprendidas com os humanos de maneira “inteligente”, capazes de vencer todas as partidas de um jogo ou de pintar como Rembrandt ou compor como Mozart, criar roteiros de filmes prontos para agradar a multidões, o que exatamente estamos comemorando? Quem quer vencer sempre, afinal de contas? Esse sim é um mundo que me parece muito chato! Um mundo obcecado por dados e por previsibilidade, onde tudo precisa ser respaldado por equações de antecipação, em cenário de ausência de risco, em que incerteza virou palavrão. Nele as empresas se apegam cada vez mais às promessas do “big data”, das respostas da neurociência, do admirável mundo novo digital, em que tudo parece controlável. Vivemos a soberania das mesas de compras, em que criatividade é tratada como commodity – cegueira e anestesia típicas da era do Prozac. Um tiro no pé que se repete a céu aberto, numa espécie de acordo coletivo em nome da mediocridade.

Existe um lugar para além dos números, surpreendente e encantador, que faz brilhar os olhos das pessoas, acelerar os batimentos cardíacos, e supera as cartilha de promessas – e onde tantas vezes se faz, também, a conexão entre pessoas e marcas. É o lugar da criatividade humana. Aquela que emociona, que desconcerta, que nem sempre é unânime, que pode ser delicadamente simples. Se o que nos move é a busca da perfeição, seguiremos frustrados. A dialética entre convicção e dúvida, o paradoxo da coragem, tão bem descrito por Rollo May em A coragem de criar é o que resume o próprio ato de viver: a contradição aparente de que devemos nos comprometer por completo, e ao mesmo tempo ter consciência de que podemos estar errados.