Comecei a pensar no tema deste artigo ainda de férias em Istanbul, na Turquia. Levei na bagagem o livro com o nome da cidade, de Orhan Pamuk, um olhar de dentro que acabou aguçando o meu jeito de perceber a mistura de Ocidente e Oriente de muitos sabores e perfumes, as novas cores, inclusive no céu, o convívio rotineiro da história milenar com o frescor da modernidade. Lá, os trajes atípicos das mulheres (mesmo em tempos de discussão global sobre o papel da mulher na sociedade), a língua quase impronunciável, o domínio irrefutável da religião muçulmana e até o cerco permanente a possíveis terroristas se inserem de maneira natural na experiência: é como estar dentro de um caleidoscópio, sempre em movimento, num cenário salpicado de contrastes e estímulos ao intelecto e ao coração.

Curiosamente, Istanbul me fez pensar muito sobre o senso de coletividade, aquele capaz de transformar realidades e salvar da desigualdade social. Em Istanbul há pobreza, sim, mas não há miséria, e as pessoas sabem que ninguém ganha se o vizinho vai mal. As pessoas cuidam umas das outras e também dos gatos e dos cães, que moram nas ruas não porque foram abandonados, mas porque são livres: ganham comida, abrigo, atenção e uma existência digna. Homens e bichos convivem, quem diria, harmoniosamente, numa grande e populosa metrópole, de uma beleza arrebatadora e caótica, em que tudo poderia dar errado, mas o mau humor mais aparente talvez seja o dos taxistas, impacientes com o trânsito frequentemente complicado. Eles nos lembram, com o resmungo das suas buzinas, que a vida é dura, sim, como em qualquer canto do mundo.

De Istanbul, acompanhei com tristeza as notícias da guerra entre os traficantes da Rocinha, no Rio de Janeiro, que complicaram a rotina dos moradores não só da favela, mas do entorno, inclusive o meu bairro, a Gávea, onde houve a suspensão, por vários dias, das aulas na escola da minha filha. No Rio, a desigualdade reina escancarada, todos os dias, não importa para onde se vá ou em que bairro se more. É o resumo do Brasil inteiro, com ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres e uma grande confusão ética, uma gigantesca crise de responsabilidades. Aqui se esquece uma sabedoria essencial que Fritjof Capra defende no fascinante livro A teia da vida: a de que o homem não tece a teia da vida, que ele é apenas um fio, e tudo o que ele faz à teia, faz a si mesmo. Capra se vale do pensamento sistêmico aplicado para argumentar que as comunidades podem e devem se organizar inspiradas no sutil equilíbrio dos ecossistemas, em que o primeiro dos princípios é a interdependência. É o que torna a vida… sustentável.

Tudo isso para dizer que há esperança, claro. De volta ao Brasil, encontro o Rio vivendo, também, a ressaca boa do Rock in Rio, que atingiu seu mais alto grau de excelência em toda a sua história de 32 anos. Vendeu 700 mil ingressos, ocorreu na mais perfeita ordem e alegria, reuniu mais de 40 marcas diferentes focadas em proporcionar ótimas experiências e mostrou o Rio de Janeiro na sua vocação mais genuína: a do entretenimento de qualidade. A qualidade que vem da experiência, adquirida com a ajuda fundamental das muitas tentativas e erros do caminho. O próximo Rock in Rio, em 2019, deve ser ainda melhor, porque os organizadores já estão debatendo aquilo que pode ser melhorado. É um forte exemplo daquilo que se pode fazer no Rio de Janeiro e no Brasil quando se leva a sério um projeto, quando se persiste “apesar de”.

Vendo o Rock in Rio brilhar, depois de uma Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos realizados outro dia mesmo, não dá para não acreditar que é possível virar esse jogo. Mas a cidade, que quer se fortalecer como marca, realizar os melhores eventos do mundo, ampliar o turismo e ser vista com respeito, precisa antes de tudo cuidar dos seus. Precisa cuidar da integridade das suas pessoas, dos seus bichos, das suas ruas, do seu trânsito, das suas comunidades mais carentes – as favelas, tratadas como células apartadas, mas que são as verdadeiras entranhas dessa cidade. Estamos todos implicados – governo, iniciativa privada e cidadãos. Não tem ninguém de fora desse pacote. Construção de marca é isso. Cada gesto conta. E pequenos gestos são tão importantes quanto os grandes. O público não perdoa.

Eu acredito que, para a virada do Rio ocorrer de verdade, será preciso incorporar o sentido de conexão defendido por Capra, e no qual eu levo fervorosa fé: a consciência de que não dá mais para ignorar que fazemos, todos, parte de uma imensa cadeia, na qual cada escolha, cada ato, conta. A liberdade dos gatos e dos cães de Istanbul me mostrou a força do comportamento construtivo coletivo, em rede. Parece pouco, mas é quase tudo.