Atualizada 09/03 às 09h

A teoria do caos diz basicamente que uma pequena mudança no início de um acontecimento gera consequências grandes no futuro. Em dezembro de 2019, o médico chinês Li Wenliang alertou sobre um vírus e foi acusado pelo governo local de criar “boatos”. Quando ele morreu, em fevereiro, seu alerta já havia cruzado oceanos e ecoava em milhares de casos.

Mesmo menos letal que outros vírus, o denominado Covid-19 ocupa noticiários com dados de saúde, que sobem, e de economia, que descem. Até o fechamento desta edição, são mais de 111.984 casos em quase 90 países (25 no Brasil) e 3.892 mortes (zero no país), segundo site criado na universidade americana Johns Hopkins, que reúne dados de centros de controle.

Já no braço comercial, a estimativa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para alta do PIB global foi de 2,9% para 2,4%; e para a China, de 5,7% para 4,9%. À Reuters, Laurence Boone, economista-chefe da OCDE disse que o cenário “colocará países em recessão”.

Apesar do atual abismo entre os números fora e dentro do território brasileiro, a globalização tornou cada peça do Covid-19 uma pedra no dominó que cai lentamente pelas fronteiras brasileiras. Buscando um quadro amplo, o PROPMARK procurou cerca de 60 fontes entre agências, marcas, entidades, analistas de mercado e jornalistas especializados em diferentes setores. Pelo menos por enquanto, profissionais defendem cautela, priorizar pessoas e colocar as marcas como parceiras do consumidor.

Plataforma criada no Centro de Ciência e Engenharia de Sistemas da universidade americana Johns Hopkins é abastecida com dados de centros de controle da doença

OBSERVAR E INFORMAR
Na China, em países da Europa e nos Estados Unidos, a publicidade já vê ligeiras perdas de investimento, queda no consumo e regimes de home office para evitar propagação. No Brasil, agências afirmam que este cenário ainda não existe.

David Laloum, presidente da Y&R, conta que não houve redução de investimentos de clientes ou em mudanças no dia a dia. “Seguimos a política do WPP, que restringe viagens ao mínimo essencial. Cancelamos, por exemplo, um meeting Latam interno, e pedimos aos colaboradores precauções de higiene”, diz. Para ele, apenas se a doença expandir no país, devem haver retrações. “O impacto sobre mercados financeiros, que gerou revisão de crescimento global e local, pode afetar o desempenho de qualquer negócio a médio prazo.”

A Lew’Lara\TBWA também reduziu viagens ao estritamente necessário e reforçou internamente a prevenção e o conhecimento sobre o vírus. Marcia Esteves, CEO, destaca o acompanhamento diário feito com os clientes e defende que o foco é priorizar a saúde e a segurança das pessoas. “É período de observação e de cautela, para não gerar pânico. É um vírus pouco conhecido, estamos aprendendo. É um momento de atenção e cuidado”, comenta.

Para João Consorte, CEO da McCann Health Brasil, o fato de a agência atuar no segmento de saúde ajuda no distanciamento para tomar decisões eficientes. Sem ver motivos para mudar a rotina além de protocolos de prevenção, ele avalia que agora as agências devem ser grandes aliadas das marcas, buscando alternativas para minimizar os impactos no negócio. “Cautela, prudência e serenidade. A indústria precisa agir com responsabilidade: agências têm de trabalhar levando aos públicos dos seus clientes as informações e ações corretas; a imprensa tem de levantar os dados atuais, checar e fazer com que as pessoas tenham a informação como ferramenta; e a mídia atuar de forma séria, sem pensar só em audiência”, declara.

Na mesma linha, a Associação de Marketing Promocional (Ampro) age no combate a “boatos”. O presidente Alexis Pagliarini lembra que a desinformação gera insegurança e reação exagerada. “A Ampro fez entrevista com um dos maiores especialistas em infectologia, David Uip, que foi taxativo: não há orientação para que eventos de qualquer porte sejam cancelados. A associação tem disseminado essa informação confiável para evitar efeitos danosos no mercado”, diz.

David Laloum: “Restrição em viagens, dia a dia normal”

Fernand Alphen, co-CEO da F.biz, que também não mudou a rotina além da questão de viagens, cita outra dimensão: “momento de exacerbação de uma neurose coletiva”. “É muito mais um sintoma da ansiedade das pessoas ligadas às causas mais profundas (mudanças climáticas, desemprego, crise de confiança nos sistemas políticos, ascendência de ideologias que achávamos erradicadas) do que o coronavírus em si. Calma e bom senso, por enquanto, são o melhor remédio”.

Dos 25 casos no Brasil, SP tem 16 (RJ tem três, BA tem dois, e ES, DF, AL e MG têm um cada) entre eles um funcionário da Mastercard. O escritório local foi fechado para higienização, mas a operação segue normalmente e os procedimentos de segurança e saúde estão sendo seguidos.

O governo do estado de SP iniciou a campanha com orientações de higiene e cuidados para evitar fake news. Estratégia inclui TV, digital, rádio e OOH.

CENÁRIO FORA DO CENÁRIO
No Hemisfério Norte, onde o vírus está mais disseminado, o debate já ventila possível recessão no mercado de anúncios. À Campaign Live, Julian Douglas, vice chairman na VCCP, arrisca um “talvez”, mas se diz otimista.

Em sua avaliação, diante da incerteza, do adiamento e até da remoção dos gastos com marketing, “marcas enfrentarão danos irreversíveis”. “Os mais adaptáveis sobreviverão e até prosperarão. Quem for capaz de agir rápida e decisivamente, e até jogar na ofensiva, pode reabastecer o mecanismo de crescimento do mundo pós-Covid-19”, diz.

Já Tracey Barber, diretora de marketing global do Havas Creative Group, disse que efeitos indiretos serão sentidos inevitavelmente. “A situação muda tão rapidamente que é difícil prever seu impacto. Para nossa indústria, levará algum tempo para que os efeitos sejam sentidos. Devemos proteger as pessoas e apoiar nossos clientes.”

O The Drum informou que o Dentsu Aegis Network (DAN) ouviu clientes na China sobre reflexos no curto prazo. Cerca de 47% disseram que vendas foram significativa ou severamente afetadas, e só 7% pararam de investir em publicidade. A maioria das mudanças de estratégia (61%) foi de curto prazo e só 9% de longo. Em comum, executivos indicam que marcas sejam sensíveis nas mensagens, com foco no interesse público e não só em vendas, por ser “questão humanitária”.

João Consorte: “É preciso agir com responsabilidade”

SETORES EM ATENÇÃO
Apesar de o efeito dominó atingir indiretamente a todos, algumas indústrias lidam com uma dinâmica mais complexa, como a de eletrônicos. Em 21 de fevereiro, a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) divulgou que em sondagem com 50 indústrias da área, 57% tinham problemas no recebimento de itens da China: 5 pontos percentuais acima da pesquisa feita 15 dias antes.

A situação é observada principalmente com fabricantes de celulares e computadores, forte setor no país. Em abril de 2019, pesquisa da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo apontou que o Brasil tinha dois dispositivos por habitante, sendo 230 milhões de celulares ativos.

Ainda no levantamento, a Abinee fala que 4% das pesquisadas operavam com paralisação parcial, outras 15% programaram paralisações parciais e 54% não parariam atividades.

A Flextronics, fabricante dos celulares da Motorola, tem revezamento de férias coletivas entre funcionários de Jaguariúna (SP). A Samsung paralisou as atividades por três dias em Campinas (SP) em fevereiro, mas já normalizou a operação e “não identificou impactos no fluxo de reparos” ou nos “atendimento dos prazos legais e contratuais”. A LG Electronics do Brasil começou dia 2 de março uma parada de 10 dias na produção na fábrica de celulares em Taubaté (SP). E a Huawei não viu impacto em sua cadeia de suprimentos e serviços.

Para o presidente-executivo da Abinee, Humberto Barbato, isso alerta todos os setores sobre “a dependência” de materiais e componentes de um único mercado. Hoje, 42% desses itens são da China, totalizando US$ 7,5 bilhões em 2019. Demais países da Ásia respondem por 38% das importações destes componentes no ano.

Na cadeia produtiva brasileira de medicamentos, o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) não tem conhecimento de que o impacto da epidemia na produção e fornecimento de matérias-primas da China esteja afetando o fluxo de importações, a produção e o abastecimento de medicamentos na indústria farmacêutica no Brasil. “Os estoques de princípios ativos e demais insumos importados são suficientes para atender às necessidades de produção das indústrias nas próximas semanas. E os estoques nos postos de saúde e nas redes de farmácias e distribuidoras garantem o abastecimento”, diz em nota.

Para o órgão, eventuais relatos de falta de matérias-primas ainda “são pontuais e não configuram, por enquanto, problema de abastecimento no setor”. Mas, segundo a Agência Brasil, há certa preocupação, porque a Índia, principal fornecedora mundial de genéricos, restringiu a exportação de 26 ingredientes farmacêuticos e de medicamentos gerados deles.

Diversas empresas importam insumos, componentes e materiais da China

Outro setor em alerta é o de viagens, com desafios por céu e mar. Balanço da Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA, em inglês) mostra que a demanda por viagens aéreas cresceu 2,4% em janeiro, em relação ao período no ano anterior. Mas, comparado a dezembro de 2019, houve recuo de 4,6%, menor ritmo mensal desde abril de 2010, quando cinzas vulcânicas na Europa levaram a cancelamento de voos.

Para Alexandre de Juniac, diretor-geral da IATA, janeiro foi “a ponta do iceberg” do impacto no tráfego aéreo devido ao Covid-19. “Principais restrições de viagens na China não começaram antes de 23 de janeiro, mas foi o suficiente para o crescimento de tráfego mais lento em quase uma década.”

A Associação Brasileira das Agências de Viagens (ABAV) informa em nota que não há registro de prejuízos ou problemas com solicitações de reitineração ou remarcações. “Estamos atentos às informações de fornecedores/receptivos e atuamos solicitando que não imponham restrições ou penalidades aos consumidores.” Uma das maiores companhias aéreas no Brasil, a Latam está atenta ao tema e informou que, sobre a demanda de passageiros, “é cedo” para prognóstico.

Nos oceanos, gigantes como Princess Cruises, Costa Crociere e MSC Cruzeiros enfrentam cancelamento de partidas da China e restrições de escalas e desembarques em vários países. Citada “com preocupação” por mais de uma fonte, a suíça MSC vive expansão com investimento de € 13,6 bilhões para ampliar e ter 29 navios até 2027 (eram 16 em 2019). Seguindo medidas de segurança em todo mundo, ela informa que a temporada brasileira segue a programação e “não houve impacto nas reservas”.

Em terra firme, o setor automotivo monitora a situação 24/7 pois Wuhan, berço do Covid-19, é um grande polo. Em janeiro foram vendidos 1,93 milhão de carros na China (queda de 19% em relação ao mesmo mês em 2019). No Brasil, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) destacou que montadoras estão atentas a viagens e monitorando equipes e itens. Em coletiva, o presidente Luiz Carlos Moraes afirmou que o estoque está normal, e o emprego estável, com 126 mil pessoas trabalhando no setor.

Olhando o primeiro bimestre e a “fotografia do momento”, ele sinalizou “risco não generalizado de parada de produção no fim de março”. “Estamos passando por um momento de alto impacto no mundo. Todas as alternativas, como transporte aéreo, são estudadas. Se houver parada pontual, ajustaremos rapidamente. Não há tom de alarmismo, mas de realidade. Risco existe, mas conseguimos fazer a gestão”, ponderou.

CONFIANÇA E REFLEXÕES
Além dos negócios, especialistas alertam para o atendimento ao consumidor e atenção à reputação. O Procon-SP pediu a empresas do setor de eletrônicos para que expliquem como vão enfrentar problemas.
O material está em análise, mas, independentemente dos resultados, Renata Reis, coordenadora do órgão, explica que o consumidor não pode sofrer. “Captar peças de mercado externo é um risco da atividade. A eventual falta de insumos foi gerada por opção comercial e o prejuízo não pode ser imputado ao consumidor”, pontua.

Patrícia Gil, professora de comunicação corporativa do curso de jornalismo da ESPM SP, atenta para a reputação da empresa. “Se uma marca não atender à emergência do consumidor, isso tende a afetar a disposição ou percepção dele. Reputação tem necessariamente a ver com confiança”, diz.
Responsável pela área de investimentos do CA Indosuez, Fabio Passos, resume o desafio de equilíbrio: de um lado, isolamento dos casos e redução do contato social para conter o avanço do vírus, do outro o funcionamento normal das economias. No meio, choques de demanda e oferta. Mesmo com cautela, os mercados precisam estar prontos para agir e pensar em efeitos caso o problema persista muito mais tempo. “A disrupção da vida diária de milhões de pessoas coloca em risco mercados de trabalho de países e setores mais afetados, e pode gerar problemas duradouros no consumo”, alerta.

Algumas medidas incluem mudanças no calendário de eventos, como os cancelamentos do South by Southwest (SXSW), que teve desistência de marcas como Apple, Netflix, IBM, Amazon, TikTok e Warner Media. No mesmo dia, a Associação Brasileira da Produção de Obras Audiovisuais (Apro) informou o cancelamento do Roadshow’20, programado na Califórnia.

Outros grandes eventos já tinham sido cancelados, como o Mobile World Congress (MWC) e o Global Marketer Week, da World Federation of Advertisers (WFA). E há monitoramento diário de programações como Jogos Olímpicos e Cannes Lions. Na indústria do cinema, estúdios e distribuidores também acompanham o desenrolar. Por enquanto, foram adiadas a estreia chinesa de Mulan (Disney, de março para data a definir) e a abertura global de 007 – Sem Tempo para Morrer (Universal, de abril para novembro).

O economista Antonio Everton Junior, da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), concorda que os prejuízos dependerão da extensão e duração do problema. “Produções, shows, viagens, compra e venda de bens e serviços estão sendo revistos, suspensos e/ou cancelados, o que prejudica as cadeias globais de suprimento, a geração de valor e a performance das empresas, bem como os seus resultados”, explica. Luana Miranda, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV IBRE, acrescenta que a análise é contínua e complexa. “Ainda não dá para ter dimensão. O potencial de desaceleração no mundo pode ser grande, mas é difícil mensurar”, diz.

Analistas estimam efeitos de negócios no Brasil no primeiro semestre do ano, mas com chance de recuperação no segundo. Para profissionais de marketing, a questão central é se o consumo será afetado “apenas” pelo que ocorre do lado de fora das fronteiras.

Brasil observa efeitos do Covid-19 com cautela, mas estuda caminhos