No começo da V&S, há mais de 30 anos, a agência cabia inteirinha (oh, saudades!) em quatro salinhas numa casa muito simpática no Rio de Janeiro. O glorioso estafe era constituído de duas duplas de criação, dois “contatos”, que era como se chamavam os executivos de atendimento na época, dois mídias e dois financeiros, ou seja, quatro pessoas. Nessa hora você me pergunta, como duas duplas, dois atendimentos e dois financeiros somam quatro pessoas? Pois é simples: basta cada um fazer três coisas ao mesmo tempo.

Assim éramos nós. O principal cliente era a Editora Globo, com seus fascículos. Puta cliente. Campanhas nacionais com direito a filmes da maior qualidade, páginas inteiras de jornais, outdoors. E tudo com 20% de comissão (talvez seja disso que eu tenha mais saudades, pois sou profundamente sentimental). A história é a seguinte: o Combochi era o diretor da editora e um dia estava na sala de criação, de costas para mim, conversando com o diretor de arte e eu notei que a conversa estava tomando um rumo desagradável: o irresponsável do diretor de arte estava prometendo apresentar naquela hora mesmo uma campanha cujo texto eu não tinha ainda nem começado. Tentei sinalizar para que ele esticasse a conversa para me dar tempo de criar no mínimo um conceito.

A cena era esta: o diretor de arte olhando para mim, o cliente de costas e eu gesticulando algo como: “enrola que eu vou inventar alguma coisa”. Exagerado como eu sou, estava fazendo gestos com as mãos, quando o Combochi percebeu e olhou para trás e me surpreendeu. Pilhado em flagrante, em plena pantomima, não sei até hoje o que me deu, mas a única coisa que me pareceu razoável foi sair rebolando da sala, imitando Carmem Miranda, cantando: “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim, oh meu bem, não faz assim comigo não!”. Imagine um gordo barbudo fazendo trejeitos de Brazilian Bombshell e rebolando como uma travesti, revirando os olhinhos e saindo da sala cantando. Tudo na tentativa de disfarçar. O Combochi passou alguns meses escabriado, me olhando torto. Sem contar que na porta ainda terminei com um grito de teatro de revista: “Skindô, Skindô… oba!” Mais tarde eu vim a saber que Aparício Torely, o Barão de Itararé, fez uma igualzinha na Faculdade de Medicina de Porto Alegre.

No fim de uma longa e ajuizada aula, resolveu encerrar com um grande clímax e fez para a plateia uma pergunta retórica e clamou: “Então, me digam, senhores, quem somos nós?” Fez um silêncio cheio de expectativa: o que viria a seguir? E ele bradou, ainda mais teatralmente: “Quem somos, pergunto eu?” E Aparício se deu conta que tinha se perdido. Esquecera a resposta imaginada. Branco total. Voltou à pergunta na esperança de se lembrar da apoteose: “Nessas horas, vem à nossa consciência essa terrível dúvida: afinal, quem somos?” E não consegue achar a solução. Desesperado, acredita ter encontrado uma alternativa. E começa a cantar: “nós somos da pátria a guarda, fiéis soldados, por ela amados”. E sumiu, porta afora, deixando atônita a distinta plateia que até hoje não conseguiu atinar com o que quis, afinal, dizer o palestrante. Pois, ontem mesmo, botei pra fora meu lado de Rolando Lero com um mico quase igual. Num ambiente profundamente Bolsonarista, apresentando uma campanha, fui surpreendido com a inevitável pergunta de quem seria meu candidato para Presidente da República.

Declarar-me favorável ao capitão ficaria evidente minha total falta de caráter, já que Haddad e o PT já tinham recebido todas as ofensas possíveis. E eu, de vez em quando, sou sincero. Um dos clientes me perguntou: “E você, Lula, vai votar em quem?” E eu respondi, representando urgência: “Onde é o banheiro?” E me tranquei, fingindo estar fazendo alguma coisa lá dentro, visando passar o tempo até o assunto ser esquecido. E tive um pensamento estranho olhando a privada: em vez de fazer merda, vou votar em branco.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)