Marlene Bregman, consultora estratégica da Leo Burnett Tailor Made/Crédito: Alê Oliveira

Com mais de 40 anos de carreira, Marlene Bregman, consultora estratégica da Leo Burnett Tailor Made, fala nesta entrevista que nunca viveu uma situação parecida como a de hoje e prefere se ater ao lado positivo do que a pandemia da Covid-19 pode trazer para a humanidade, “que é o consenso de que as grandes crises são os berços naturais das grandes ideias, são o ‘turning point’ da história”. Para ela, o papel do planejamento continua sendo o de sempre, “ser o responsável por identificar e ter a custódia do pensamento e o comportamento do consumidor”.

Você se lembra de algo parecido com essa pandemia que estamos vivendo hoje, que afeta a saúde e os negócios do mundo inteiro?
Nem eu nem ninguém. Se existe uma unanimidade na situação que estamos vivendo é que ela não tem precedentes. A busca de insights e aprendizados que nos ajudam a lidar com essa nova situação nos joga a todos na vala comum das indagações sem resposta. Ao tentar pinçar exemplos na história e ter um padrão de comparação o mais perto que os historiadores e cientistas sociais podem chegar são os acontecimentos da gripe espanhola, de 1914; a Grande Depressão dos anos 1930; ou a 2ª Guerra Mundial. E mais recentemente o poder do terrorismo com as Torres Gêmeas de NY, em setembro de 2011. Mas nenhum desses acontecimentos, nem suas terríveis consequências, nos preparou para a pandemia da Covid-19. Embora seja justo lembrar que uma pandemia mundial com consequências trágicas, em tese, não pegou nenhum líder mundial de surpresa. Em uma rápida visita aos materiais da internet temos vídeos de George Bush, Barack Obama e Bill Gates, entre outros, advertindo para a possibilidade de algo no gênero. Não me cabe nem tenho o conhecimento ou talento para julgar as razões que levam os grandes líderes de nosso tempo a ignorar causas tão relevantes e não implementar medidas para evitar desastres. Prefiro me ater ao lado positivo dessa história, que é o consenso de que as grandes crises são os berços naturais das grandes ideias, são o ‘turning point’ da história. É justamente nestas ocasiões que surgem as grandes iniciativas que transformam a sociedade, como se a humanidade necessitasse da escuridão para fazer surgir uma nova luz. Talvez o que veremos é o começo de uma nova era com mais solidariedade, conexão e compaixão em substituição à idade do individualismo excessivo e da competição.

Qual é o papel do planejamento neste momento para dar um ‘norte’ para agências e marcas?
O papel do planejamento continua sendo o de sempre, ser o responsável por identificar e ter a custódia do pensamento e o comportamento do consumidor. Em 41 anos de carreira, enfrentei muitas épocas de transformações na sociedade, de quebras de paradigmas, mas, em retrospecto, todas iniciavam um círculo virtuoso de crescimento social, moral e econômico: o fim da ditadura e as primeiras eleições livres, a era da revolução da internet e das telecomunicações, o controle da inflação após décadas de instabilidade e a ascensão da classe C em direção ao sonho da classe média. Todos esses eventos colocaram desafios imensos para as empresas e marcas. Ao planejamento, cabia auscultar os corações e mentes dos consumidores, seus sonhos e humores, para se antecipar e criar estratégias que respondessem aos anseios das pessoas nesses novos tempos. Agora não é diferente. A nossa missão é exatamente a mesma, o que mudou foi o ecossistema que se tornou extremamente variado e complexo com o advento da tecnologia digital. Nesse momento estamos testemunhando a aceleração do comportamento online e todos os novos desafios que isso traz. Essa é a nova realidade que tem de ser enfrentada. Nossos clientes esperam que joguemos luz e inteligência em um cenário cada vez mais complexo, em um ambiente de cacofonia cada vez mais alta e volumosa, agora impactada pela preocupação e pelo medo, misturado com a esperança de dias melhores.

O que é preciso fazer para não deixar que a pandemia paralise totalmente os negócios?
Isso está nas mãos dos líderes e gestores melhor preparados para se adaptar a essa nova situação. Vão ter sucesso nos negócios aqueles que souberem reagir rapidamente, terem a coragem de atuar em cenários dominados pelas incertezas e estarem dispostos a assumir riscos. Terão mais êxito aqueles que têm clareza dos propósitos dos seus negócios, que entendem a importância de ouvir os especialistas, que estejam abertos a criar ambientes colaborativos para a análise de novos cenários, oportunidades e novas ideias, para encontrar novas soluções. Nesse cenário a resiliência é fundamental: aprender, errar, acertar, arriscar e aprender de novo sem perder o foco. E mais importante que tudo: estar cercado da melhor informação, parceiros e colaboradores.

Que tipo de empresa pode ficar no meio do caminho e ter de encerrar as portas?
São aquelas que agem de forma oposta ao que foi descrito na resposta anterior. São as empresas sem agilidade nem poder de adaptação, avessas ao risco e à necessidade de se reinventarem. Aquelas congeladas em crenças e processos que passam ao largo das necessidades e comportamento das pessoas nesse momento, correm o risco de ver os seus negócios definharem por falta de clareza do papel que seus produtos ou serviços têm na vida das pessoas.

Como você avalia o mundo pós-coronavírus?
Acho que ninguém tem ainda essa resposta. Essas ocasiões abrem as portas para que coisas extraordinárias possam acontecer. É mais do que possível que ao fim dessa crise a maioria das empresas e pessoas volte aos seus hábitos e comportamentos anteriores. Mas, recentemente, a revista Time digital publicou um artigo do historiador holandês Rutger Bregman (coincidência de nome) em que ele, se referindo à extrema desigualdade e injustiça em que a humanidade vive desde sempre, chama a atenção para algo que a Covid-19 inaugurou: a importância dos profissionais essenciais para a nossa sobrevivência durante a pandemia. Esse tema invadiu todos os jornais com a lista das profissões mais essenciais nesse momento. E o autor, ao analisar essa lista, observou astutamente que o trabalho mais vital e essencial para a nossa sobrevivência é executado, em sua maioria, por aqueles que têm os salários baixos, ou seja, os milhares de homens e mulheres que atuam nas áreas de saúde, educação, transportes públicos, supermercados, manutenção, limpeza etc. Isso me faz desejar que o mundo pós-coronavírus crie um novo padrão de ética e de solidariedade em relação àqueles que, com seu trabalho de menor ‘prestígio’, desempenham um papel tão fundamental em nossas vidas. Eles são parte da grande maioria dos trabalhadores brasileiros e uma nova ética em relação a eles – capacitação, salários, respeito – pode transformar um país.

E o mercado publicitário? Que tipos de lições podem ser tiradas dessa crise?
O mercado publicitário vem sofrendo uma série de transformações resultantes das novas tecnologias nos últimos tempos, obrigando as agências a rever e a redesenhar a sua atuação. O efeito Covid-19 acaba por ter um papel acelerador de novos comportamentos e formas de atuação: o trabalho em home office abre uma nova e importante alternativa derrubando na prática preconceitos preexistentes. Os resultados são maior agilidade, reuniões mais focadas e objetivas (tanto internas como com os clientes), aprovações mais rápidas e objetivas, menos burocratização de processos em geral e uma evolução na área de produção de filmes com estéticas bonitas, bem elaboradas apesar de ‘caseiras’. Acredito também que os clientes que consideram as suas agências como fornecedoras estão vivendo uma nova experiência ao descobrir que essas agências se revelaram as parceiras ideais nesse momento, em que a agilidade é vital para se analisar cenários com segurança, encontrar saídas com qualidade e solucionar problemas de forma inteligente, eficiente e criativa. Quem sabe se abre uma nova era para cultivar uma maior valorização, consideração e respeito entre todas as partes.

Como tem sido o seu dia a dia e o que espera nas próximas semanas?
Meu dia a dia é relativamente calmo, porque só trabalho em projetos especiais. Mas, por obra e graça de um chefe excepcional, Tiago Lara, sou uma observadora atenta de tudo o que está ocorrendo. O planejamento da Leo está literalmente fervilhando, construindo pontes e oportunidades para os nossos clientes. Por exemplo, nosso diretor de data strategy, Daniel Dante, gera, diariamente, com sua equipe dados e as informações mais diversas sobre os consumidores de diferentes categorias, para desenhar cenários e insights que vão embasar estratégia, soluções e novas oportunidades para os nossos clientes. Gustavo Zilles, outro diretor de planejamento, enxergou a oportunidade de entender melhor as emoções do brasileiro nesses tempos de Covid-19, e liderou uma pesquisa conduzida junto a mil brasileiros de ambos os sexos e todas as classes socioeconômicas em amostra representativa da população urbana brasileira. Eu não sei o que nos aguarda nas próximas semanas, só tenho certeza de que estamos preparados para juntos reagir e encontrar as melhores soluções para os problemas e oportunidades de nossos clientes.

Como se adaptar ao ‘novo normal’?
Já estamos no início do ‘novo normal’. Ele já chegou e já está nos transformando, seja no processo de trabalho ou em nossas casas, nossas relações com a família, amigos, nossas atividades de lazer, na maneira como compramos, vendemos, exercitamos a nossa fé, e em quase tudo o que fazemos. A adaptação já começou e vai se desenvolver ao longo do tempo, com os ajustes necessários. As empresas e as pessoas têm de estar atentas e abertas para reagir e se reinventar. Mas eu espero que as explosões de solidariedade no mundo inteiro, com pessoas cantando para seus vizinhos de suas varandas, jovens se oferecendo para fazer compras e ajudar os mais velhos, pessoas distribuindo refeições nas ruas, não sejam um fenômeno passageiro. Voltando ao historiador Rutger Bregman, ele conta que passou os últimos cinco anos estudando a visão dos cientistas sobre a sociedade nas últimas duas décadas e concluiu que eles mudaram de uma visão mais cínica para uma visão mais humanista da sociedade. “Eles dizem que os seres humanos não evoluíram para lutar e competir, mas para fazer amigos e trabalharem juntos. Nossa habilidade única para cooperar pode explicar o sucesso de nossa espécie”. É com esse otimismo e esperança que eu sonho o nosso ingresso na era do ‘novo normal’.