Está ocorrendo de novo: uma startup do mundo digital mexe com os devaneios dos que sonham acordados com um mundo pós-televisão no modelo que conhecemos há 70 anos. Mas, apesar de sua aparente disruptiva inovação e imenso potencial, a nova proposta tende a ter o mesmo fim de tantas “ameaças” ao predomínio da TV no entretenimento e informação popular e na publicidade: ela será devidamente devorada pela TV.

Revivendo um mito milenar, o enigma da esfinge será uma vez mais decifrado pela TV e não será por ela devorada. Muito pelo contrário. Neste mês de agosto está havendo um frisson no mundo do entretenimento e da mídia americana com o lançamento da NewTV, uma iniciativa liderada por dois monstros sagrados desses setores: Jeffrey Katzenberg (ex-Disney e atual DreamWorks) e Meg Whitman (ex-CEO da eBay e da HP).

A dupla comandou o levantamento de um capital inicial de US$ 1 bilhão para sua nova proposta, uma produtora de conteúdo audiovisual em formato de curta-metragem, que pretende revolucionar a programação nas modalidades digitais, em especial o mobile. Pela ficha corrida deles, o valor levantado e a constante aposta na explosão do mobile como alternativa de informação, entretenimento e publicidade, já há previsões de mais uma alternativa para “acabar com a TV”.

Mesmo considerando a espetacular lista de investidores na startup – empresas como Disney, eOne, Fox, ITV, Lionsgate, MGM, NBCUniversal, Sony Pictures, Viacom, WarnerMedia, Alibaba, Goldman Sachs, JPMorgan Chase e Liberty Global – e a ficha corrida de grandes sucessos de seus líderes, as coisas precisam ser vistas dentro de uma perspectiva mais realista. Para começar, o primeiro alvo de valor a ser levantado era de US$ 2 bilhões e desde o ano passado os executivos da NewTV visitaram cerca de 200 dos maiores produtores mundiais de conteúdo audiovisual. A “revolução” chega com menos força, portanto. Outra análise relevante a ser feita é considerar que três das principais “ameaças” à TV nos EUA pouco afetaram sua força. O Google e o Facebook não obtiveram parte significativa dos US$ 70 bilhões anuais absorvidos em publicidade pela televisão americana e o Netflix vem pagando cerca de US$ 12 bilhões por ano por conteúdo originalmente produzido pela TV.

No caso da audiência, a análise histórica dos números da Nielsen, que mensura a TV americana, indica que as cerca de 5 a 6 horas de consumo diário médio da TV por lar na década de 1960 (a primeira era de Ouro da TV) atingiu seu pico de quase 9 horas entre 2010 e 2012 e hoje está na casa de 7 horas e 50 minutos diariamente – contra cerca de 1 hora da combinação de Netflix, YouTube, Facebook e similares, incluindo o que se assiste nos mobiles.

Tudo isso ocorre após 25 anos do início da era da internet, de mais de metade dos americanos terem acesso ao sinal de alta velocidade há 15 anos e de mais de uma década do novo paradigma do mobile.

Como alguns analistas mais criteriosos da mídia e do entretenimento nos EUA comparam, os tubarões que iriam comer a TV têm se revelado peixinhos ornamentais no que se refere ao consumo e receita do entretenimento, informação e esporte no formato audiovisual. Ou seja, tem mais chance de os produtores tradicionais de conteúdo para TV absorverem a demanda desses formatos em curta-metragem – inclusive reciclando seus clássicos – e de as subsidiárias da TV tradicional se transformarem nos principais players da “nova” mobile TV.

Um dos segredos dessa resiliência da TV pode estar na relação entre qualidade e duração de sua programação e os comerciais nela veiculados, que será o tema da próxima coluna.

Rafael Sampaio é consultor em propaganda (rafael.sampaio@uol.com.br)

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