No Brasil, uma pessoa LGBTQIA+ é morta a cada 26 horas. 329 foi o número de vítimas registrado em 2019, o último levantamento feito, até então, pelo Grupo Gay da Bahia. E, desse total, 82,3% foram brutalmente assassinadas. Diante de um cenário triste e, ao mesmo tempo, perigoso, poucas – e talvez ineficazes – são as ações públicas para se combater a homofobia no país.

E quando a temática LGBTQIA+ aparece, surge em propostas como a da deputada estadual Marta Costa (PSD), protocolada em agosto do ano passado, que ganhou os holofotes nas últimas semanas, quando entrou na pauta da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo).

“É vedado em todo o território do estado de São Paulo, a publicidade, por intermédio de qualquer veículo de comunicação e mídia que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionado a crianças”, diz o artigo primeiro da PL 504/2020.

O mercado, claro, reagiu. Na terça-feira (20), dia em que o projeto foi adiado pela primeira vez, a #PropagandaPelaDiversidade foi lançada pela Wieden+Kennedy São Paulo como um convite. A ideia, na verdade, era que todas as agências entrassem no movimento – e deu certo. Já na quinta (22), quando a PL foi adiada pela segunda vez, a Mutato uniu agências, anunciantes e plataformas digitais contra o projeto.

O movimento foi resultado de um esforço dos profissionais da agência que integram o Comitê de Diversidade. A Mutato conseguiu mobilizar dezenas de lideranças do mercado para adotarem compromissos públicos, cujo objetivo é assegurar representatividade e segurança às pessoas LGBTQIA+ nas campanhas e nos times responsáveis por elas. Até o fechamento desta matéria, mais de 90 profissionais do mercado aderiram à campanha.

Mas, afinal, o que a publicidade pode fazer para combater o preconceito? Eduardo Simon, CEO da DPZ&T, disse que é preciso que haja a união entre agências e anunciantes em torno do propósito de exercer com mais eficácia seus papéis como formadores de opinião. “Devemos contribuir de forma efetiva para uma sociedade mais justa, trazendo mais representatividade para a comunicação. E sabemos do poder da propaganda para seguir gerando reflexão, debates e, assim, ajudar cada um de nós a aprender mais sobre outras pessoas”, enfatizou o executivo.

VP de produção da WMcCann, Tato Bono concorda com Simon: é preciso incluir o cliente nesse processo. “(Precisamos) trabalhar fortemente em políticas de diversidade e inclusão como agentes de mudança durante toda a jornada do trabalho, começando pelo público interno, no alinhamento com o cliente no briefing, passando pelo acompanhamento com parceiros e fornecedores, até o contato final com a audiência na execução das campanhas”.
E talvez esse seja mesmo o caminho para aumentar a representatividade LGBTQIA+ na publicidade. Diversas marcas já apostaram na temática. A campanha de Dia dos Pais da Natura do ano passado é um exemplo. Para falar sobre paternidade, a marca convidou, entre outras personalidades, Thammy Miranda. Já a Havaianas apostou na linha Pride com sandálias, meias e camisas com a temática LGBTQIA+.

Filipe Bartholomeu, sócio e CEO da AlmapBBDO, disse que a agência procura sempre dar espaço, palco e voz ao assunto. “Por aqui, estamos fazendo propaganda pela diversidade há anos. E não porque é legal ou politicamente correto. Mas porque a propaganda deve refletir a sociedade e, mais que isso, criar cultura. Então, não basta só apoiar a #PropagandaPelaDiversidade. Temos de nos inspirar, todos os dias, na força que a comunidade LGBTQIA+ sempre carregou”, ressaltou.

Para Luiz Fernando Musa, CEO da Ogilvy, a agência tem o interesse em compartilhar boas práticas e estabelecer metas periódicas a fim de garantir a diversidade nos trabalhos. “No Grupo Ogilvy, especialmente, essa responsabilidade se dá não apenas da porta para fora, com campanhas as quais nos orgulhamos muito. O orgulho também é estendido aos nossos clientes, igualmente comprometidos em dar voz e protagonismo a todo ser humano”, contou o executivo.

ENTIDADES
A Abap (Associação Brasileira das Agências de Publicidade) repudiou o Projeto de Lei 504/2020. A entidade classificou o projeto como inconstitucional, uma vez que a Constituição Federal “estabelece a exclusividade da União em legislar sobre publicidade comercial, como veda qualquer afronta à inviolabilidade do direito à liberdade, à igualdade e à censura de natureza ideológica e social”, disse Mario D’Andrea, presidente da Abap, que assina o comunicado.

Em linha com a Abap, a Fenapro (Federação Nacional das Agências de Propaganda) também afirmou que o PL é inconstitucional. “Trata-se de uma tentativa de impor discriminações em um setor sobre o qual o Legislativo estadual não tem sequer autoridade”, disse Daniel Queiroz, presidente da entidade. Ele ainda afirmou que a publicidade possui um papel social importante e não pode ser “tolhida por leis que vão na contramão da realidade da sociedade”.

A ABA (Associação Brasileira dos Anunciantes), em suas redes sociais, enfatizou que a publicidade é matéria de competência privativa da União, além de explicitar que a proposta fere garantias constitucionais de liberdade de expressão.

A Aberje (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial) protocolou uma carta, endereçada ao presidente da Casa, deputado Carlão Pignatari, manifestando-se contra o PL 504/2020. “A comunicação tem um papel fundamental e a publicidade atua na construção do imaginário das pessoas, podendo colaborar no combate a preconceitos e estereótipos e na promoção de valores adequados ao século 21. Por isso o projeto de lei em questão fere não apenas valores de uma sociedade próspera e livre, mas é indiscutivelmente inconstitucional. O PL 504 não pode prosperar”, diz o documento, disponível no site da Aberje.

PL 504 FERE CONSTITUIÇÃO
O advogado Paulo Gomes de Oliveira Filho, da Paulo Gomes Advogados Associados, um dos nomes mais reconhecidos do mercado, afirmou que o Projeto de Lei 504/2020 fere, pelo menos, dois artigos da Constituição Federal.

O artigo quinto diz “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, enquanto o Artigo 220 deixa claro que a “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. “Como diz a Constituição Federal, é proibido proibir. Não pode haver censura e o direito de se manifestar – desde que não haja ofensa – é garantido por lei”, enfatizou Oliveira Filho. “E, além da questão constitucional, existe a questão discriminatória”, completou.

Já em relação à proposta da deputada Marta Costa, o advogado disse que não é possível entender muito bem o projeto de lei. “Se a intenção dela é proteger as crianças, ela deveria saber que já temos leis federais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e as normas do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), que garantem a proteção da criança em relação à publicidade comercial”, garantiu o advogado.

O PROPMARK entrou em contato com a deputada Marta Costa, mas não houve retorno até o fechamento desta edição.