Não consigo mais comprar uma mísera cartela de remédio para dor de cabeça numa farmácia sem ser convocada pelo funcionário do caixa a fornecer o meu CPF – sequência numérica que costumava ser minha identificação mais íntima, só usada em casos de necessidade mais extremos.

Minha rotina costuma ser, hoje em dia, uma sucessão de aviltamentos à minha privacidade – da constrangida foto, acompanhada de documento, claro, para entrar em qualquer prédio comercial às intermináveis conferências de identidade a cada tentativa de resolver problemas com o cartão de crédito ou plano de celular por telefone. Nome da mãe, nome do pai. Uma vez confirmei o nome da minha mãe sem um de seus sobrenomes e quase tive meu cartão de crédito cancelado, porque a atendente cismou que eu não era eu. E experimente se irritar com uma atendente ao telefone: a coisa toda pode se transformar em uma batalha na qual você será, invariavelmente, o perdedor.

Minha foto hoje anda espalhada por todos os lugares possíveis e imagináveis: o motorista do Cabify me vê bem antes de chegar ao local combinado, quem me manda um gmail também conhece meu rosto e, claro, milhares de pessoas conhecem opiniões e visões de mundo – dependendo do tanto que me permito revelar nas redes sociais. À medida em que vamos nos desnudando em público, dando conta de nossos destinos, check-ins, check-outs, marcas preferidas, conexões profissionais e pessoais, liberando números de cartões de crédito e preenchendo cadastros e mais cadastros em troca de acessar conteúdos que nos interessam, nosso mundo vai ficando devassado. Talvez não soubessemos o tamanho do buraco, mas não creio que haja pessoas tão ingênuas a ponto de acreditar que as empresas que nos solicitaram e continuam solicitando dados, em troca de pequenos favores, diariamente, não façam uso de algo tão valioso, em próprio benefício.

OK, habitamos até aqui um mundo obscuro, onde as regras do jogo não estiveram muito claras. Mas agora que elas estão claras: dá pra saltar fora? Mudar de comportamento? Existe um jeito de sair desse interminável labirinto algorítmico, que engoliu boa parte dos meus intestinos, quase devassou minha alma? Outro dia ao ler uma matéria na Folha sobre as metrópoles do futuro, em que cidadãos trocarão informações (mais?) pessoais por uma gestão urbana eficaz, avistei logo abaixo a reportagem que mostrava um outro extremo, quase comovente, da cidade futurista: moradores de Pinheiros protestando contra a colocação de asfalto novo em sua rua, desejosos de manter, permanentemente, os paralelepípedos originais. Pouco práticos, escorregadios e irregulares, porém lindos.

Sei porque cresci numa rua de paralelepípedos e sigo morando em outra, e sei da dor e da delícia de deixar certas coisas exatamente como elas são. Em outra página da mesma edição do jornal, a perspectiva de lojas, escolas, companhias aéreas, bancos e ônibus implementarem o reconhecimento facial, em busca quem sabe até mesmo de identificar emoções – juntando mais e mais dados nossos, os bichinhos do laboratório da Matrix, ao imenso caldeirão já existente. E, mais adiante, em uma reflexão sobre a cada vez maior facilidade tecnológica de se criar e espalhar fake news, o questionamento desanimado do articulista: será que a internet, afinal de contas, deu errado? Eu respondo que não. Não foi a internet que deu errado, mas toda a humanidade. Somos perversos no mundo e aplicamos toda a nossa perversão também na internet, nos valendo das ferramentas que tivermos à disposição. Proponho um reboot total, mas de valores humanos: valendo para todas as pessoas do planeta, que diariamente constroem, ou destroem, coisas, ideias, empresas, marcas, outras pessoas, a natureza. E fico do lado dos defensores dos paralelepípedos. Eles, sim, me representam.

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