Eu era um jovem redator de propaganda quando conheci Edgard dos Anjos. Faz mais de 40 anos, e me lembro de que fiquei absolutamente fascinado pelo cara. Ele era amigo de todo mundo, começando pelo governador do estado (Espírito Santo) e indo até o porteiro do restaurante, e tratava-os exatamente do mesmo jeito: mal. Ou melhor. Afetivamente mal, encantadoramente crítico, amorosamente irônico. Jamais admitiu que pudesse existir qualquer diferença entre as pessoas. Nunca levou ninguém muito a sério, principalmente a si mesmo. Longe de significar desprezo, esse olhar crítico ao ser humano era amoroso, por incrível que pareça. Havia profundo carinho na sua indiferença diante de aparências e demonstrações de poder ou riqueza.

Ele gostava de gente. Mas poucas vezes vi ou ouvi elogiar alguém. Minha mulher não entendeu a primeira vez que se encontraram. Nos pegou no aeroporto e foi direto ao Ferrinho, um restaurante na praia de Vitória onde era recebido como um rei. Atendido pelo próprio Ferrinho e uma corte de garçons demonstrando absoluta intimidade e alegria por vê-lo. Depois de uma infinidade de tira-gostos e literalmente dezenas de doses de whisky, minha mulher perguntou qual seria o melhor prato da casa. Jamais imaginou a resposta: “pede qualquer coisa… aqui tudo é a mesma merda”. Ao que Ferrinho, sentado à mesa, retrucou: “também com as porcarias de fregueses que temos…” Eles se amavam.

Foi Edgard que me apresentou Graciano Spíndola, que me deu a honra de lançar o imenso empreendimento Nova Guarapari e outros tantos, inclusive fazer sua vitoriosa campanha para prefeito. Graciano e Edgard se amavam e se admiravam, embora quem ouvisse uma conversa entre eles pudesse ter certeza de que eram inimigos mortais. Aliás, eu seria capaz de afirmar que, com exceção de dona Therezinha, sua mulher, de quem sempre falou com respeito, a medida do amor de Edgard era a disposição em criticar. Quanto mais alguém era considerado filho da puta da pior espécie, pois há hierarquia até entre filhos da puta, mais significava que Edgard gostava da pessoa. E tinha atitudes surpreendentes.

Em plena revolução, com algumas autoridades de olho na origem de seu dinheiro e poder, foi interpelado por um brigadeiro que reclamou de sua casa ter sido construída no fim da pista do aeroporto. Num interrogatório qualquer, a autoridade resolveu questionar a localização da casa, dizendo que ela poderia prejudicar o tráfego aéreo. Edgard, na condição de interrogado (ou de declarante, não sei), respondeu: “tem uma coisa, brigadeiro, se a porra de um avião de vocês cair no meu quintal, não devolvo…”

Numa outra ocasião, o general-comandante da Região Militar levou a família inteira para almoçar no Ferrinho. Após a refeição, fez questão de elogiar a qualidade da comida. Ferrinho ouviu calado toda louvação e chamou Edgard para ser testemunha do agrado da autoridade. Ele ouviu calmamente os elogios todos e respondeu: “é pena, general, que eu não possa dizer o mesmo da comida que o senhor serve para os presos. Já fui hóspede de seu quartel e conheço a gororoba que dão para a turma”.

Edgard tinha uma característica interessante. Não era apaixonado por música, e os músicos o adoravam. Não era apreciador de pintura e tinha grandes amigos pintores. Sua escrita estava longe de ser primorosa, mas os escritores o amavam. Ele gostava das pessoas, e gostava do que elas tinham no cérebro e no coração. Por isso o talento nas artes ou a quantidade de dinheiro no bolso nunca o impressionaram. Uma de suas especialidades era organizar almoços, onde conseguia reunir todo mundo. Fazia isso em Vitória e no Rio e receber um convite para essas ocasiões era uma alegria.

Esses encontros, segundo um ministro sempre presente, tinham uma característica interessante. Nunca se atrasavam. Pois o assunto da mesa era invariavelmente falar mal dos retardatários. Edgard foi dono de jornal, editor, assessor político, dono de restaurante, fez todo tipo de negócio. Ganhou e perdeu. Mas nunca comemorou com estardalhaço, nem nunca reclamou. Edgard morreu tendo uma enorme vantagem sobre a grande maioria dos mortais. Nunca encheu o saco de ninguém.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)