O Campeonato Carioca 2020 acelerou uma série de tendências e transformações no mercado esportivo de mídia. O retorno da competição em meio à pandemia da Covid-19 exigiu protocolos de segurança rígidos, inviabilizando o público nos estádios. A experiência do torcedor, inegavelmente, precisou ser ressignificada. A começar, pela ampliação da oferta de conteúdo das partidas no digital.

Fora dos gramados, a situação foi igualmente atípica. A criação da Medida Provisória 984, pelo presidente Jair Bolsonaro, em 18 de junho, trouxe mudanças na legislação a respeito dos direitos de transmissão dos jogos. O cenário culminou na rescisão de acordos entre clubes cariocas e a Globo, deixando incertezas sobre o modelo de transmissão do torneio a partir do ano que vem. Por outro lado, a MP possibilitou que os times assumissem novos papéis enquanto produtores de conteúdo e distribuidores das próprias transmissões. Foi aberto também espaço para que veteranos no esporte, como o SBT, pudessem retornar ao segmento de transmissões após quase 20 anos.

Conquista do Flamengo contra o Fluminense na final do Campeonato Carioca, na semana passada, foi transmitida pelo SBT na TV aberta e na FlaTV no digital

Em apenas dois meses, os debates sobre a força do streaming no esporte se intensificaram, bem como outras questões como a popularidade dos canais sociais dos clubes e possíveis modelos para sua monetização. O jogo entre Flamengo e Fluminense pela final da Taça Rio, no último dia 8 de julho, por exemplo, detém o título de live mais vista da história do YouTube globalmente, com mais de 3,5 milhões de views simultâneos no canal FluTV. O marco, sem dúvida, pode despertar interesse de patrocinadores. A partir de experiências bem-sucedidas como essa, como tornar o formato sustentável do ponto de vista comercial? E quanto aos demais players, como canais de TV, streaming e rádio? Quais são seus novos papéis e desafios nessa dinâmica?

A resposta pode estar em uma palavra-chave: colaboração.
A parceria entre SBT e Flamengo para a final do Carioca no último dia 15 de julho pode ser um exemplo de ganha-ganha. A partida contra o Fluminense no Maracanã foi transmitida pela emissora em TV aberta e alcançou números recordes de audiência. O SBT marcou 27,7 pontos de média no Rio de Janeiro, conquistando o primeiro lugar isolado com 3% de vantagem em relação à Globo, em segundo lugar, de acordo com dados da Kantar Ibope, das 21h às 22h58. A emissora também comercializou todas as cotas de patrocínio disponíveis no valor de R$ 9,8 milhões cada para Ambev (Brahma Duplo Malte), Estácio, Havan, Hypera Pharma (Miorrelax), PicPay e Unilever (Shampoo Clear).

Müller, do SBT: força da complementariedade dos meios

O Flamengo, por sua vez, além de ter obtido receita fruto do acordo com SBT, manteve transmissão própria pela FlaTV, onde obteve pouco mais de um milhão de views simultâneos. Para Fred Müller, diretor de negócios e marketing do SBT, a complementaridade dos meios tem sido a estratégia utilizada pela emissora, logo, dividir a transmissão com o Flamengo não foi vista como concorrência. “Nosso conteúdo está no YouTube com a mesma programação da TV e já ultrapassamos essa curva de aprendizado entendendo que os comportamentos em cada plataforma são diferentes. A TV aberta é poderosa tanto em alcance como em cobertura”, avalia.

Na visão dos patrocinadores, a supremacia da TV na entrega massiva de audiência segue como principal valor, como destaca Armando Areias, CMO do PicPay. “Desde o ano passado, temos investido em TV aberta, com estratégia de merchandising no Big Brother Brasil, patrocínio a jogos pontuais da seleção brasileira, além de ativações em outros programas, como Encontro com Fátima Bernardes e Domingão do Faustão. O patrocínio à final do Campeonato Carioca é a continuação dessa estratégia, queremos que um grande número de telespectadores esteja em contato com a marca simultaneamente e o futebol é uma ótima aposta”.

Se por um lado, a TV mantém seu papel, o interesse crescente de grandes marcas em patrocínios no digital, como em torneios de eSports, por exemplo, indica um caminho interessante para os clubes. A Mastercard é tradicionalmente conhecida pelo patrocínio da Copa América, Libertadores e seleção brasileira, mas este ano anunciou parceria global com a Riot, detentora do game League of Legends (Lol), um dos mais jogados no Brasil e no mundo. O time de Lol do Flamengo, inclusive, foi campeão brasileiro do torneio em 2019. “Para nosso atual momento de marca, os patrocínios não representam somente a oportunidade de gerar brand awareness. O objetivo maior é criar conexões reais e verdadeiras com nosso público. Um dos grandes propósitos ao apoiar uma nova iniciativa é, justamente, gerar engajamento e conversa, além de aflorar novas paixões”, destaca Sarah Buchwitz, VP de marketing e comunicação da Mastercard Brasil e Cone Sul.

Negócios no digital
Para Amir Somoggi, CEO da consultoria Sports Value, a crise da Covid-19 acelerou os processos, mas a transformação digital dos clubes é uma tendência nos últimos anos. Mas para que ela se intensifique, o olhar em relação ao marketing e principais fortalezas do clube precisa mudar. “Não dá para imaginar que o clube só funciona em dia de jogo. O departamento de marketing não pode trabalhar apenas de quarta a domingo. Parece que nada acontece nos dias que antecedem o jogo. É preciso criar oportunidades em patrocínios, não pode ser só marca no uniforme”.

Dare to Play, no BarçaTV+, mostra a visão das jogadoras do clube a respeito dos desafios no futebol

Em sua visão, devem se sair melhor os clubes que souberem aproveitar conteúdos exclusivos para atrair audiência. E isso independe das transmissões dos jogos ao vivo. Não à toa, há times no exterior com receitas cada vez mais sólidas com modelos de video on demand. O Barcelona, por exemplo, lançou em junho deste ano o Barça TV+, plataforma de streaming com mais de mil horas com documentários, séries originais e outros conteúdos de bastidor. A assinatura custa 4,99 euros.

“No Brasil, falta olhar para o legado do clube, para quanto a marca vale. O modelo de negócio não deveria ser só o jogo ao vivo, há muito mais a ser consumido, como noticiário, newsletter etc.”, avalia. Como exemplo, Somoggi destaca o documentário Last Dance, da NBA, ESPN e Netflix sobre a era de ouro do Chicago Bulls na liga. “Apenas com imagens de arquivo, produziram um material de excelente qualidade que fez a busca por produtos do time e da liga multiplicar no Brasil”.

Documentário Last Dance, da Netflix, ESPN e NBA, narra a era de ouro do Chicago Bulls sobre a liderança de Michael Jordan – FOTO – Andy Hayt/NBAE via Getty Images

Para Paulo Calçade, comentarista do canal ESPN Brasil, há inúmeras oportunidades de conteúdo que os clubes podem aproveitar. “Os treinamentos são em sua maioria fechados para a imprensa, mas a TV do clube tem acessos privilegiados, exclusivos. Isso tem valor, dá para vender. Há uma série de produtos e propriedades, como entrevistas coletivas e conteúdos de bastidor que geram valor”.

Se do ponto de vista de conteúdo, os clubes estão muito bem servidos, há um ponto crítico de atenção na entrega. Para Eder Luiz, diretor de esportes e narrador da Transamérica São Paulo, o movimento dos clubes no digital é válido e legítimo, mas a proposta é diferente dos meios tradicionais. “Os clubes estão procurando novos caminhos, se profissionalizando na comunicação, no entanto, essas transmissões têm formatos diferentes das realizadas pelas emissoras, onde o objetivo é uma cobertura ampla de todos os clubes e com isenção”.

Calçade, da ESPN Brasil, reforça a opinião do colega. Para ele, a mistura entre entretenimento e jornalismo é uma questão que deve ser observada pelos clubes. “Mesmo no chamado jornalismo profissional, vemos reclamações sobre a falta de isenção no futebol. Mas existe a busca pelo equilíbrio no conteúdo. Já nas produções dos clubes, a paixão toma todo o espaço. Alguns clubes optaram até por não falar os nomes do jogadores adversários. Para o torcedor, essa paixão faz sentido, mas ela é sustentável para o negócio?”.