More Grls: "A cultura das agências ainda é muito masculina"

Pesquisa comandada pelo More Grls a pedido do PROPMARK toca em assuntos espinhosos, pois as relações de trabalho deixam a desejar e o comportamento ainda está fincado no passado. Laura Florence, diretora-executiva de criação da operação brasileira Havas Health & You, e Camila Moletta, head de design na F.oxi Consulting, cofundadoras do More Grls, abraçaram e lideraram a sondagem junto ao mercado publicitário por conta do Dia Internacional da Mulher (8). O resultado mostra que velhos problemas não foram resolvidos. “Ainda faltam mulheres na liderança para um olhar mais empático”. Veja a seguir a análise que elas fazem sobre a situação.

Como vocês veem a condição da mulher no ambiente de trabalho?
Essa pergunta é bem ampla e difícil de responder por todas as mulheres. A situação da mulher branca, com boa situação sociocultural, é muito diferente da mulher negra periférica. Vamos então responder pela mulher criativa que está nas agências hoje. Que é o grupo de mulheres que temos mais proximidade. Para a criativa, o dia a dia ainda não é fácil. A cultura das agências ainda é muito masculina. Ainda não resolvemos o problema do assédio, não resolvemos o overworking, não resolvemos a cultura da contratação por indicação, a cultura dos prêmios acima de qualquer outro skill, a cultura da promoção masculina por potencial e a feminina por mérito reconhecido. Ainda faltam mulheres na liderança para um olhar mais empático para quem está abaixo. Por isso, vemos muitas mulheres, quando chegam no nível pleno, desistindo da carreira, saindo das corporações para exercer sua criatividade de outra maneira. Geralmente como empreendedora ou freelancer. É difícil continuar trabalhando muito, ganhando pouco e ainda vendo poucas mulheres conseguindo destaque no topo da cadeia criativa. É realmente desanimador. Mas é importante ressaltar que essa é uma realidade de quem consegue entrar nas agências. A maioria mulheres brancas privilegiadas pela sua cor de pele e condição social. As mulheres negras são praticamente inexistentes nas criações. Para elas, a porta nem foi aberta. O problema é muito mais complexo.

Olhando para a pesquisa elaborada por vocês, percebe-se que o mercado avançou quando o assunto é cargo de liderança, porém ainda deixa a desejar. A que vocês atribuem isso? Machismo, condição cultural?
É um problema estrutural da sociedade em que vivemos. Percebemos isso analisando dois resultados: a discrepância de mulheres na liderança criativa em relação às outras áreas. E o número ínfimo de mulheres negras na liderança. Vale ressaltar que achamos o resultado melhor do que o esperado. Porque acreditamos que as agências que tinham melhores índices ficaram mais encorajadas para responder. Se a gente tivesse 100% de respostas, o número de 25% de mulheres na liderança criativa e 4,3% de mulheres negras na liderança seria ainda menor. Os números são reflexos
do machismo e o racismo estrutural. É difícil mudar esses números porque para isso é preciso abrir mão de privilégios e antigos hábitos. As estruturas das agências são muito hierarquizadas, o poder é concentrado.

Como agem CEOs que têm mulheres em cargos imediatamente abaixo?
Alguns CEOs com mulheres em cargos imediatamente abaixo, não compartilham o poder com elas. A última palavra ainda é do rei. Essa liderança masculina clássica ainda não entendeu que a médio prazo a visão unilateral vai impactar negócios. Nada impede mais uma empresa de inovar que a manutenção de privilégio. Tratar políticas de diversidade como uma ação social é uma perda de tempo e de dinheiro. Acreditamos que isso está matando o mercado aos poucos. Falando especificamente da criação, ter uma mulher no maior cargo é difícil para alguns CEOs com background de negócios. Porque é a área que ele tem menos controle. Ter um homem liderando é mais confortável, nessa hora a busca por um “igual” bate mais forte. Outro fator são os critérios que o mercado usa para contratar: ser conhecido de alguém do seu ciclo de confiança, ser superpremiado e ter no currículo grandes agências e campanha de grandes marcas. Se as mulheres não tiveram as mesmas oportunidades, esse critério meritocrático é quase cruel. Porque não olhamos para critérios como: capacidade de liderança, persuasão, gestão de pessoas, gestão de conflitos, visão de negócio…? Não é isso que faz um bom líder?


Na avaliação de vocês qual a tendência? Quanto tempo ainda levaremos para ver algo equilibrado entre homens e mulheres quando o assunto é cargo de liderança?
Difícil estimar um tempo. Mas acreditamos que dois grupos podem ser os grandes aceleradores da mudança: o cliente e a alta liderança. O cliente, pelo simples fato de exigir de suas agências mais diversidade. Cliente pede, agência faz. Tanto no corpo geral de colaboradores quanto na liderança. Principalmente na criação. Alô clientes! Quem são os criativos da sua marca? Tem mulheres? Mas, além da exigência, é preciso também ter consciência de como outras exigências impactam as pessoas dentro das agências. Apertou o prazo? Vai ter gente virando noite. Espremeu as horas da equipe ao máximo? Com certeza essas horas vão sair do tempo que essas pessoas têm com as suas famílias. Abriu concorrência, chamou sete agências, pediu trabalho criativo pra todo mundo? Nem precisamos continuar a descrever que você já pode imaginar o que vai acontecer. Concorrência está fora do escopo, é um investimento da agência, são horas e horas extras de pessoas. Como é que conseguimos manter mães nessa profissão? Conta pra gente. Agora falando da alta liderança. Diversidade deve ser meta. Assim como a ampliação de escopo de negócio e a conquista de novas contas. Porque gente diversa pode salvar o mercado. Perdemos negócios para outros centros criativos, pois ficamos sempre olhando pro mesmo lado. Enquanto o mundo crescia, inovava e ampliava o conceito de criatividade.

More Grls: “Diversidade deve ser meta”

Quando a mulher assume um cargo alto de chefia, em geral, ela tem homens sob seu comando. Difícil ela escolher outras mulheres para compor com ela. Isso seria machismo ao contrário? É cultural?
Não dá para considerar essa frase 100% verdadeira. Na verdade, os dados falam o contrário. Segundo a pesquisa Panorama Mulher 2019, do Insper, ter uma mulher presidente aumenta em 2,5 vezes a possibilidade de ter mulheres na liderança. Porém, não podemos esquecer que as mulheres que estão na liderança hoje cresceram num ambiente bastante machista e podem refletir esses comportamentos. Hoje não é mais socialmente aceito falar alto “Eu prefiro trabalhar com homens”, mas isso era comum sair da boca de uma mulher há cinco anos. Vieses como este podem levar mulheres em comando a ter mais homens abaixo dela do que mulheres. Por insegurança. Nem todas estão no mesmo grau de consciência do seu papel na transformação. Mas somos otimistas nesse sentido. Acreditamos que a sororidade vai vencer as delícias de ser exclusiva.

Quando se fala em mulheres negras em posições de liderança, a discrepância fica ainda maior. Por quê?
Nossa, dá para falar horas sobre isso. Mas vamos tentar resumir. Primeiro gostaríamos de colocar alguns conceitos que aprendemos numa palestra com a Lia Vainer, doutora em psicologia social pela USP, que pesquisou o racismo do ponto de vista dos brancos. O branco é visto como a norma. Logo, os negros são os diferentes. Mesmo que inconscientemente achamos o branco superior moral, intelectual e esteticamente. Se numa entrevista dois candidatos, um branco e um negro, tiverem a mesma formação acadêmica, a mesma experiência, a mesma desenvoltura, o branco, entrevistado por um branco, terá vantagem. Mas os problemas ainda são maiores. Se pensarmos que a população negra teve menos acesso a educação de qualidade, vive na sua maioria na periferia dos centros urbanos, a chance de um negro ser selecionado para uma vaga, levando em consideração os critérios do mercado, é quase nula. Colocamos ainda mais uma camada na desigualdade quando falamos de mulheres. Por isso, para ter mais homens e mulheres negras em todos os cargos, mas principalmente na liderança, precisamos urgentemente desapegar da meritocracia. É preciso falar de novos critérios de contratação e boa performance. Como resiliência, capacidade questionadora, narrativa de vida, aspectos sociais.

A área de criação é a que menos tem mulher. O mercado acredita que ela é pouco criativa? Serve muito bem para os departamentos de planejamento ou atendimento menos para a criação. É isso?
Primeiro precisamos acabar com vários mitos: 1. não existe nada que comprove que homens são geneticamente mais criativos; 2. mulheres não têm nenhuma predisposição genética para preferir áreas como atendimento, mídia e planejamento. É tudo uma construção social. Ter poucas mulheres na criação é reflexo de menos oportunidades, cultura organizacional pouco acolhedora e manutenção de privilégios. Não tem nada a ver com capacidade e talento. Durante anos e ainda hoje, as mulheres são aceitas na criação para cuidar de marcas de categorias específicas como: beleza, higiene pessoal e cuidados com a casa. Sabe de onde vem isso? Da mesma crença que acredita que as mulheres precisam estar sempre bonitas, cuidar de todos e da casa. Nada contra marcas dessa categoria. Aliás são essas marcas que hoje estão produzindo mais exemplos positivos pra sociedade. O problema é segregação. Mulheres compram carros, bebem cerveja, fazem esporte e aplicam dinheiro. Podemos muito bem criar para marcas onde somos principais consumidoras. 85% da decisão de compra está nas mãos das mulheres. Outro assunto importante para ser debatido são das premiações. O mercado brasileiro tem um jeito todo especial de produzir peças premiáveis. Tudo é feito de proatividade, fora do expediente normal, às vezes em muitos fins de semana. Se, segundo o IBGE, as mulheres trabalham 72% a mais que os homens em tarefas domésticas, 21,3 horas semanais, quem tem mais chances de ser superpremiado? E o critério? Já parou para pensar que ele foi construído através de anos e anos de supremacia masculina? Se a gente chora de coisas diferentes, tem diferentes medos, tem diferentes preocupações, com certeza, pensamos publicidade de um jeito diferente. Acreditamos que quando os festivais tiverem pelo menos 50% de mulheres no júri, o critério gradativamente vai mudando. Para finalizar, enquanto ainda levarmos todos nossos vieses inconscientes para os processos seletivos, distribuição de jobs, cultura organizacional, critérios criativos e políticas de promoção e remuneração, sempre teremos menos mulheres.

As empresas ou agências podem acreditar que não existe mulher preparada para assumir cargos de lideranças ou criativas?
Se os critérios aplicados para contratação forem apenas prêmios, indicações e passagens por agências renomadas, as chances de encontrar uma mulher são menores. Se os critérios forem potencial criativo, organização de processos, gestão de pessoas e de conflitos, conhecimento do negócio, só para citar alguns, as chances de encontrar uma mulher superqualificada aumenta muito.

Como tentar encarar e se movimentar para mudar tudo isso?
Para ajudar o mercado nesse sentido estamos formulando um documento cocriado com alguns líderes do mercado chamado Diretrizes de Equidade, que contém sugestões de como contratar, manter e promover talentos diversos. Ainda está em desenvolvimento, mas podemos dar alguns “spoilers”. Para isso acontecer é preciso um esforço do ecossistema inteiro: clientes, lideranças e até mesmo os colaboradores. O que todos esses envolvidos precisam ter em comum é consciência dos seus privilégios, colocar a diversidade na prioridade das metas e treinar a tolerância.