Mulheres se dividem sobre os movimentos contra assédio sexual
As mulheres do mundo das artes se dividem. Uma carta assinada por 100 mulheres francesas — entre atrizes, escritoras e artistas em geral — publicada no jornal Le Monde na semana passada, chama de “novo puritanismo” a onda de denúncias contra homens que tomou conta de Hollywood, após a divulgação de episódios de assédio e até estupro, envolvendo o produtor Harvey Weinstein.
A atriz francesa Catherine Deneuve está entre as signatárias da carta, que rapidamente se espalhou e gerou enorme polêmica. As francesas acusam movimentos como MeToo, Time’s Up e mesmo o francês BalanceTonPorc de “caça às bruxas” que ameaçam a liberdade sexual. O Time’s Up ganhou um anúncio no primeiro dia de 2018 nos jornais NYT e La Opinion. A carta, assinada por cerca de 300 mulheres americanas do meio artístico — como as atrizes Reese Whiterspoon, Emma Stone e Natalie Portman — trazia reivindicações em favor da igualdade de oportunidades e maior representatividade no mundo do entretenimento. Lançou uma campanha para arrecadar recursos para um fundo da National Woman’s Law Center, que custeará processos judiciais e dará apoio às vítimas de assédio.
Catherine Deneuve, que está entre as signatárias da carta que gerou polêmica
O NYT lançou um vídeo, The Truth has a voice, exibido na semana passada durante a entrega do 75º Globo de Ouro, nos EUA, para o qual a maioria das mulheres se vestiu de preto para chamar a atenção para a luta contra o assédio.
Homenageada pela premiação, a apresentadora Oprah Winfrey também chamou atenção para o tema, e destacou o papel da imprensa em retratar a verdade. Em um discurso emocionante, que ganhou o mundo através das redes sociais, a artista agradeceu às mulheres que passaram por anos de abuso e assédio e romperam o silêncio.
Oprah Winfrey no palco do Globo de Ouro, onde chamou atenção para a questão do assédio e do silêncio que impede a denúncia
Depois de todos esses acontecimentos, a carta das artistas francesas não foi bem recebida, pois fala de uma “onda de purificação puritana”, que vai para além dos limites da tomada de consciência da violência sexual exercida sobre as mulheres no ambiente de trabalho, onde certos homens de fato abusam do seu poder. Afirma, por exemplo, que estupro é crime, mas que tentar seduzir alguém, mesmo que de maneira persistente ou inconveniente, não é.
Destaca ainda que o galanteio masculino não é machismo, e muitos homens têm sido punidos e até perdido os seus empregos injustamente, apenas por terem tocado a perna ou tentado roubar um beijo de uma mulher.
Há quem considere a carta fruto da velha rixa “franco-americana”. Ou há quem leia a reação francesa como uma questão geracional, envolvendo mulheres cuja vivência as distancia significativamente do atual olhar feminista sobre comportamentos masculinos – que, para elas, eram establishment.
Catherine Deneuve, que tem 74 anos e atuou em La Belle De Jour como uma dona de casa entediada, que decide passar as tardes vivendo como uma prostituta de luxo em um bordel, acredita que os movimentos feministas atuais levaram a um excesso, que, no lugar de ajudar as mulheres, promove o ódio aos homens e à sexualidade.
A questão geracional certamente pesa. Muitas pessoas não alcançam as transformações ou o que se convencionou chamar de assédio e desrespeito às mulheres. Assobiar na rua pode? Dar uma cantada no trabalho não pode? Mulheres podem dar cantadas em mulheres, mas homens não? O que pode? O que incomoda uma mulher pode não incomodar outra, é verdade. E este parece ser o ponto central da carta das francesas. Jogos sexuais sempre serão válidos — desde que consentidos por ambas as partes, sem coerção ou abuso de poder.
“Para mim o que fica claro é que vivemos um momento há muito anunciado de troca de paradigmas. Trata-se de mudanças profundas que vão ocorrendo e os gritos dos prós e contras são os sintomas extremos antes da acomodação desses novos paradigmas. Parece difícil acreditar e não sabemos o tempo de duração dos gritos, mas, como numa tempestade, escondem novos tempos de maior respeito e equilíbrio”, diz Nádia Rebouças, consultora em comunicação.
Renata D’Ávila, presidente do Grupo de Planejamento, que vem dedicando boa parte de suas atenções à questão do assédio, afirma que os movimentos criticados na carta publicada no Le Monde foram criados para ajudar a quebrar uma dinâmica perversa que funciona desde que o mundo é mundo, e as estruturas de poder se cristalizaram.
“Incentivar a denúncia é muito importante para que possamos evoluir e ter relações mais saudáveis entre homens e mulheres. É óbvio que sempre existem excessos para todos os lados, mas os excessos não podem invalidar os movimentos. E em todo processo de transformação, muitas vezes extremos, são necessários. Lembrando que não somos nós contra eles, é simplista afirmar isso, as mudanças ocorrem com a participação deles, e muitos estão participando”, diz.
Um desses “participantes”, Ken Fujioka, conselheiro do Grupo de Planejamento que vem se dedicando ativamente a apresentar e discutir os alarmantes resultados da pesquisa sobre assédio realizada pela entidade, afirma que até compreende que mulheres francesas privilegiadas, que viveram — e aprenderam a suportar — uma realidade em que o assédio era normalizado, tenham hoje suas verdades abaladas.
“Mas não consigo concordar com a perpetuação dessa norma: parafraseando as atrizes americanas, esse tempo acabou. Por décadas, esse mal foi tratado como ‘parte do jogo’ e as vítimas tiveram suas vozes caladas. Por isso, é natural que algumas vozes acabem saindo do tom. Mas isso é menos importante do que a necessidade urgente de combater o assédio de forma contundente — de novo, uma parte não pode ser tomada como o todo”.