Na terra do “eu”, quem enxerga o outro é rei
Nunca demos tanta atenção aos números como hoje. Eles nos viciam. E é muito fácil entender o porquê: quanto mais eles fazem parte de nosso cotidiano, mais autossuficientes nos tornamos como indivíduos.
Se um médico lê 50 mIU/ml de hCG em um exame de sangue, já sabe que se trata de uma mulher grávida de três semanas, sem sequer precisar conhecê-la. Se este for o seu objetivo e você souber que esta é a “nota de corte”, você não precisa do médico. E se algum aparelho souber que número é esse, você não precisa do número. Números te empoderam a ponto de você só precisar se preocupar com os objetivos. E isso muda tudo.
Tente fazer o exercício de pensar na palavra “prático”. Pensou? Se, ao invés de pensar naquilo em que você é habilidoso em fazer, você pensou naquilo que te serve de maneira rápida, simples e fácil de usar, você pode se considerar uma pessoa contemporânea. E talvez desenvolva uma dificuldade progressiva de sentir empatia.
Desde que a conectividade e a digitalização passaram a pautar nossas vidas, a empatia vem diminuindo ao ritmo da Lei de Moore, pois toda a tecnologia converge o foco para dentro de nós mesmos. Sozinho é o novo prático, “quando eu quiser” é o novo agora e “o que eu acredito” é o novo certo. Não à toa, as tecnologias imersivas têm se desenhado como o próximo mainstrean. Esse mundo que dobra a capacidade de empoderar o “eu” a cada 18 meses, tem chacoalhado boa parte das relações de confiança, autoridade e credibilidade do mundo. Experimente ir ao centro da sua cidade e perguntar “o que você acha dos políticos? Do governo? Da mídia? Da igreja? Dos bancos? Da propaganda? Das marcas? Do capitalismo? Do socialismo?…”
Pessoas emancipadas são quase como marcas. Existe uma espécie de “Missão, Visão e Valores” interna que consome e gera conteúdo e sempre avalia se o engajamento em algo gera “lucro” ou “prejuízo” para a percepção dos demais sobre seus interesses e motivações. E é aí que o bicho pega, pois isso tem mudado todo os caminhos da economia. O setor que não teve que respirar fundo em algum momento, que atire a primeira pedra.
Paradoxalmente, quanto mais nos empoderamos como indivíduo, mais fragmentados nos tornamos como sociedade. Somos ultra-conectados em tempo real, mas ninguém consegue saber todo o trajeto que fez este humilde artigo chegar até você. Hoje é muito fácil conectar essa àquela ferramenta para transformar sistemas complexos em produtos e serviços altamente escaláveis, fixando objetivos de negócio ambiciosos, globais. A escala é um desafio simples de ser resolvido hoje. Perenidade e relevância, não. Se a nossa empatia natural tende a diminuir, é fundamental buscar constantemente revisitar o propósito daquilo que a gente oferta ao mundo.
Do nosso lado da balança, o das agências, temos sentido o baque da queda da empatia. As tensões econômicas derivadas da relação entre agências e marcas empoderadas são visíveis. Se os modelos de autoridade estão sendo questionados em todas as esferas pessoais e institucionais, porque as agências também não seriam?
Particularmente, acredito que nosso segmento ainda se enxerga muito como o prático de outrora (habilidoso em fazer algo) para provar seu valor. Precisamos ser habilidosos em ser o prático de hoje: Rápidos, simples e fáceis de usar. Nossa perenidade e relevância só se reforça com empatia. Quanto mais fragmentada for a audiência das massas, mais temos que buscar quais valores universais estão no mesmo diapasão do produto ou serviço que estamos vendendo. Senão, nosso conteúdo não será percebido como “lucrativo” para a reafirmação dos vários “eus” no mundo.
Recentemente, tivemos a oportunidade de colocar isso à prova ao realizar a primeira campanha da multinacional de beleza Kiss New York no Brasil: o lançamento dos esmaltes RK by Kiss. Fizemos uma pesquisa e descobrimos que mesmo com toda a conversa sobre o Girl Power, mulheres de diferentes tribos deixam de usar várias cores por medo de julgamentos, mesmo com vontade de experimentá-las. A campanha Liberte Suas Cores, com ações digitais, anúncios e PDV, carrega empatia em todas as peças.
Protagonizada pela atriz, cantora e modelo Sophia Abrahão, no lugar de colocarmos a voz da marca em sua boca, construímos o roteiro a partir do que ela representa para quem a admira e costuramos com o que é verdadeiro para a marca. Uma inversão aparentemente banal, mas que já atingiu 225,61% do KPI previsto sem termos chegado na metade da campanha. É o valor da empatia.
Nunca demos tanta atenção aos números como hoje. Eles nos viciam. E é muito fácil entender o porquê.
José Carlos Gonsalves é diretor de criação da Agência Vaticano (josecarlos@agenciavaticano.com.br)