Ninguém é uma ilha
Quando estive na Capadócia, na Turquia, vivi uma experiência que me marcou mais do que muitas outras naquela viagem: na pequena banca de rua, de uma senhora bem idosa, depois de escolher distraidamente alguns colares artesanais para levar de presente, na hora de pagar ela embrulha apenas dois e profere, com um sorriso tranquilo, mas olhando bem firme nos meus olhos: “Compre os outros da minha colega, ali adiante. Assim, todas ganhamos”. Naquele instante, vivi um exemplo genuíno de solidariedade: o que ganharia ela, afinal de contas, se a sua colega não vendesse nada? Depois de comprar mais alguns itens da sua colega, eu e meu marido saímos dali em silêncio, numa espécie de epifania com o inusitado do que acabávamos de vivenciar.
O que me marcou foi a ideia de que, para estar bem, é preciso que todos ao redor também estejam, ou não faz sentido. Para uma brasileira, habituada à (falta de) lógica da desigualdade, ouvir algo assim tem o efeito de um tapa na cara. Os estranhos dias que todos vivemos no Brasil durante a greve dos caminhoneiros me fizeram lembrar da senhorinha da Capadócia. Vivemos – e ainda estamos vivendo – um clima de falta. Uma falta à qual não estamos habituados, nós ocidentais da classe média privilegiada, com a cega percepção de fartura e abundância de comida, água e energia. Raramente lidamos com a falta. Como crianças mimadas, mal conseguimos lidar com a falta do aparelho celular durante algumas horas.
Nestes dias de escassez de alguns alimentos e combustíveis, ouvi amigos declarando estarem estocando comida, e o desespero em torno da ideia da falta levou varejistas a terem de limitar o número de itens comprados por pessoa. Estoques se esvaziaram não só, mas também, pelo medo da falta. Augusto Cury, autor de O colecionador de lágrimas, escreveu que quando a vida está em risco, o instinto de sobrevivência prevalece sobre a solidariedade, referindo-se a experiências de guerra. Nossa vida não esteve em risco, e por aqui nunca vivemos guerras: talvez por isso sejamos tão toscos para lidar com a falta. Como cultura, temos muito a aprender com ela.
Nossa cultura, americana ocidental, é classicamente individualista, celebra o controle pessoal e o indivíduo autossuficiente. Nossos livros de autoajuda mais vendidos têm títulos como A sutil arte de ligar o foda-se ou Seja foda. Muitas outras culturas – como a asiática e a africana – nutrem o chamado coletivismo, aquele que enxerga a interdependência em detrimento da independência, que conjuga com maior frequência o verbo na primeira pessoa do plural do que na primeira pessoa do singular. Basta ver como eles, asiáticos, reagem a grandes crises, como a de 2011.
Práticas de sustentabilidade são um bom começo para começar a enxergar as coisas pela perspectiva da interdependência. Se eu estou bem e a minha vizinhança não, isso não é sustentável. A sustentabilidade nada mais é do que o pensamento sistêmico e a boa leitura dos ambientes – a partir da interdependência entre as coisas. Durante a crise não vi exemplos retumbantes de solidariedade, vi apenas uma marca entrando em cena para fazer algo de valoroso: o Itaú, que disponibilizou suas bicicletas ao longo da semana por um valor simbólico de 10 centavos. Gostem ou não de bancos, ou da marca, ela entrou em cena, em voo solo, pondo em prática o seu propósito, para além do discurso.
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