O inexorável e o adaptável no comportamento do consumidor

Um dos primeiros novos normais de nossa evolução foi o polegar. Durante as Guerras da Gália, Júlio Cesar ordenava que os polegares dos guerreiros inimigos capturados fossem amputados para que fossem incapazes de voltar a empunhar armas. Ao longo de nossa evolução o dedo opositor nos permitiu manusear os mais diversos instrumentos com mais facilidade e precisão. E foi justamente essa habilidade que permitiu que os humanos pudessem fazer uso do fogo, cozinhar alimentos, construir abrigos, desenhar, desenvolver a escrita e, mais recentemente, adotar o smartphone quase como uma extensão do corpo.

Tal característica de nossa fisiologia compõe toda a aparelhagem física e intelectual que nos leva a outra característica única: adaptabilidade. Somos o ser mais adaptável do planeta, capazes de ocupar os territórios mais inóspitos e hostis da Terra, e de suportar toda a sorte de escassez e dificuldades. Trata-se de uma das faces do comportamento humano mais estudada e documentada, a partir de dezenas de vertentes da ciência. Em tempos de covid-19 este tema permeia todas as tentativas de compreensão sobre como será o “novo” normal desta vez.

Assim como as crises sanitárias do passado nos ensinaram que o normal seria incorporar hábitos de higiene impensáveis para a época, esta crise nos levará a algum ponto de transformação como sociedade. Mais um dantesco desafio para as marcas, que já empreendiam a busca por um papel mais sustentável, responsável e com propósito alinhado a valores da sociedade. O propósito deixou de ser um diferencial na comunicação das empresas, para se tornar componente indispensável para a longevidade, relevância e pertinência no mercado.

Pesquisas já evidenciaram que o consumidor está disposto a pagar mais caro por produtos de marcas as quais ele reconhece e acredita no seu posicionamento em relação às questões contemporâneas da sociedade. Um estudo sobre hábitos realizado pela Kantar Insights, parceira ABA, mostra que os consumidores esperam atitudes que colaborem de fato com o dia a dia, atuando na linha de frente neste momento difícil.

Com o agravamento da crise econômica, ainda mais ações sociais estarão em pauta. Como associação, entendemos o nosso papel de criar, acompanhar, reunir, divulgar e estimular iniciativas inspiradoras, para, assim, reafirmar nosso compromisso de mobilizar o marketing para transformar os negócios e a sociedade. Desta forma, conquistamos o reconhecimento do mercado como um guia, um farol que lança luz às boas práticas, tais como o movimento “Não Demita”, a “Planilha do Bem”, que conecta microempresários a profissionais de comunicação, dentre muitos outros.

Junto com a descoberta de valores, vem a questão da adoção de novas tecnologias. Sob a óptica do consumidor, a pandemia acelerou freneticamente a vida virtual. Escolas mantêm aulas normalmente por meios digitais, vídeo conferências são utilizadas para reuniões familiares e entre amigos, compras no supermercado são feitas pela internet. Segundo a Kantar Insights, surgiram novos hábitos de consumo que podem perdurar após o fim da pandemia, como o uso do e-commerce, especialmente em uma categoria que não tinha muito alcance nesse meio: os alimentos. Muitos dos consumidores, inclusive, compraram esses produtos nos últimos meses pela primeira vez no varejo on-line.

Conforme a experiência deste tipo de compra é avaliada como positiva, criam-se as condições para que esse hábito continue. Ainda de acordo com a Kantar, o consumidor começou a ser mais conectado e permanecerá assim quando sair dessa crise. Em paralelo a isso, cresce o acesso a plataformas de vídeo, podcast, conteúdo por streaming – e não só com o objetivo de entretenimento, mas também profissional e educacional.

O que mais esperar dessa mudança de comportamento? Um consumidor mais crítico e ciente da influência gerada por lives, stories e posts, que tende a rechaçar, mais do que antes, conteúdos considerados politicamente incorretos. Mas também ansioso pelo consumo reprimido, especialmente das atividades de lazer e entretenimento, incluindo os restaurantes, bares, cinemas, lazer a céu aberto. E com mais acesso à conveniência oferecida pelos apps, pela robotização e por mais tempo em casa. Inexoravelmente adaptado a este “novo” normal.

 Nelcina Tropardi é vice-presidente de sustentabilidade e assuntos corporativos da Heineken e presidente da ABA.