O poder da identidade
Nos últimos tempos o artista performático Pabllo Vittar virou tema de discussões mais aprofundadas entre intelectuais de diversas castas do meio cultural. Por sugestão de uma amiga, li o artigo do regente Tom Martins, no qual ele se mostra muito incomodado com a força midiática do fenômeno Vittar, colocando-a no mesmo caldeirão “grotesco” e “nefasto” de Anitta, do funk carioca e do rap proibidão em termos de má qualidade artística, e vai além: alega que Vittar se insere numa espécie de “novo establishment sacrossanto”, imune a críticas sob o manto da “ideologia vigente”.
Não sou especialista como Martins, mas é inegável que Pabllo Vittar é “fraco” musicalmente – e também não vejo como isso chega a ser uma novidade no país do “É o Tchan”, da Kelly Key e das duplas sertanejas. Ou no mundo pop. Música rasa, desprovida de “talento genuíno”, digamos assim, sempre bombou por aqui e em todo lugar, dividindo palcos e audiência com gente de talento artístico, movendo massas com uma força extraordinária por motivos que vão muito além da técnica vocal.
Agora por que acho que falar sobre Pabllo Vittar importa realmente – e mais, possivelmente, do que falar dos sertanejos ou do axé? Como muitos outros nomes do pop, Vittar foi o artista certo, no momento certo, que não está fazendo nada além do que aproveitar o seu momento – que passa, como sabemos, às vezes passa bem rápido. O homem que se transforma em uma linda mulher para fazer seu show não é novidade no mundo, mas é sim novidade no cenário pop deste Brasil-sil-sil, o país que mais assassina pessoas assim. Nos abrimos, tardiamente, para a discussão sobre a diversidade de gênero e Pabllo se insere no espírito do tempo, junto com outros artistas e manifestações. Se ele “carrega um discurso político”, como reclama o enfastiado maestro, é porque ele se faz necessário para blindar o preconceito que rodeia naturalmente uma drag queen que faz sucesso no mundo pop, atraindo Coca-Cola, TNT e Trident – marcas atentas ao que move o público jovem, principalmente.
“Você gosta de dar lição de moral”, diz minha amiga. E o maestro afirma que pessoas como eu, que legitimam e reconhecem o lugar do performer no mundo, no fundo estão imersos “na loucura do neocoletivismo identitário em voga atualmente”. Enquanto isso, “o objeto da crítica e, mais do que isso, a ideologia da qual esse objeto é símbolo, avança livre”, continua o maestro, sugerindo que a ideologia que acompanha Vittar deveria ser contida. Pode-se criticar Pabllo Vittar? Claro! Embora não pertença a ninguém, de fato, o poder absoluto de eleger o que é “bom” ou “belo”, não é preciso “gostar” de nada. As pessoas podem e devem criticar aquilo que não se encaixa em seus padrões artísticos, de novelas televisivas aos livros de J. K. Rowling e de Paulo Coelho. A crítica a uma ideologia, no entanto, entra em outro território, que flerta com o preconceito e com a defesa de velhos dogmas.
Manifestações que emocionam pertencem e agradam a quem lhes diz algo de valioso – e este valor, e suas graduações, é individual e intransferível, e não deveria ser questionado. As marcas que conversam com artistas como Pabllo Vittar enxergaram o poder do respeito à diferença. É mais simples do que parece, e também complexo, como explica o clássico de Manuel Castells que dá título a este artigo, uma verdadeira cartilha para compreender os tempos atuais. Nele, Castells mostra como manifestações como a de Pabllo Vittar são afirmações de identidades essenciais no combate à invisibilidade e o estigma da anormalidade. “O esmaecimento das fronteiras sexuais, desestruturando família, sexualidade, amor, gênero e poder, dá lugar a uma crítica cultural fundamental do mundo como o conhecemos. (…) Os movimentos tocam nos centros nervosos da repressão e da civilização, e serão pagos na mesma moeda.”, diz Castells, sabiamente, prevendo conflitos.
“Outro dia, um cara me disse: passou o Carnaval, não se fala mais em Pablo Vittar”, me contou um colega publicitário, visivelmente incomodado com a drag queen. Talvez sim. Talvez não.