O que inspira a cravista Rosana Lanzelotte?
Amo a cidade em que nasci, as manhãs transparentes de inverno em que as montanhas se recortam com precisão no céu.
Amo estar à beira de suas águas, sejam mares, rios, lagos, no seio da floresta, tomar banho de cachoeira, ouvir sons inusitados de pássaros secretos.
Amo passear no Jardim Botânico, espreitar as palmeiras de 200 anos, visitar o pau-mulato do Instituto Moreira Salles, ouvir canto gregoriano na missa da Igreja de São Bento no domingo, cercada de talhas douradas, e órgão no Outeiro, glórias barrocas da cidade.
Dançar na Lapa, tomar água de coco na orla, andar de bicicleta na Lagoa, escalar o morro da Urca, frequentar o Theatro Municipal, visitar 150 museus – menos um agora, tristemente –, viver cultura de todos os séculos, de todos os mundos.
Poetas e músicos cantaram a tua beleza. Minha alma canta sempre que, do avião, vejo o Rio de Janeiro.
Entre todas, és a cidade mais desenhada, pintada, fotografada.
Ninguém resiste à vista da baía cercada de montanhas de granito, cobertas por florestas verdes.
Acolhedora, tua gente é de todas as cores e jeitos, mas sempre com ginga e bom humor. Golpeada pelos governantes, há de resistir aos maus-tratos, há de renascer maravilhosa, como na letra do hino.
Alberto da Costa e Silva comentou certa vez que os cariocas não se apropriavam de sua cidade, por ser ela tão viajada de visitantes.
Queiram seus habitantes, por fim, de ti se apoderar, não mais tratá-la como um espólio maldito.
Mui leal e histórica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a única capital europeia sediada nas Américas, agora que não tens mais coroa, seja cuidada pelos que de ti não desistem.
Outro rio que me inspira não é o de Janeiro, mas também é Sebastião – o João –, mestre de todos os criadores musicais, autor de obras que perpassam séculos sem perder brilho.
É nas invenções de Bach – rio, ribeirinho, em alemão – que todos se iniciam na música, os prelúdios e fugas seguem-nos pela vida, cantamos no Natal Jesus, alegria dos homens, com a letra do Vinicius.
O “bem temperado” levou-me ao cravo, companheiro de sempre, que sorte a minha.
Descobriu-se recentemente que tocar um instrumento torna as crianças mais inteligentes, dota-os de maior potencial para o aprendizado, tarefas de classificação, estabelecimento de analogias.
Bom seria ver os jovens brasileiros, tão musicais, terem a chance que eu tive, a de aprender música desde a infância.
O Brasil seria, certamente, um país melhor…
Consonâncias e dissonâncias que despertam calma ou fúria, exímio retórico, Bach usava a sua arte para traduzir as paixões humanas e o louvor a Deus.
Si menor é a mais perfeita tradução da angústia; dó menor, o luto pela morte da mulher amada; sol maior acalma; ré maior traz júbilo. Humilde artífice da música, é o autor de mais de mil obras conhecidas.
Deleitaríamo-nos com muitas outras, caso não se tivessem transformado em papel de embrulho no açougue.
Criou 20 filhos, alguns músicos brilhantes como ele, ficou cego de tanto copiar partituras à luz de velas, esmerou-se em usar o talento para o bem.
Uma nova cantata para a missa de cada domingo, paixões monumentais a cada Páscoa, música sublime, que atravessa gerações e vira canção, jazz, rock.
Rock, barroco, Bach e Rio, vamos dançar.
Rosana Lanzelotte, Especial para o PROPMARK