A diferença entre migué e miguelão
Migué é a molecagem de quem tenta tirar vantagem de uma situação, se fazendo de desentendido. Miguelão é quando o migué recorre à inteligência artificial e adultera os fatos, sem um pingo de escrúpulo. Exemplo de migué: Leão de Ouro da DPZ para KY, em 1994, que depois foi cassado.
Exemplo de miguelão: Grand Prix de Creative Data, da DM9 para Consul, em 2025. A história do Festival de Cannes se confunde com a história dos migués.
Prática tão corriqueira que seria o caso de parodiar Jesus Cristo, diante da ameaça de apedrejamento de alguém que criou, inscreveu e foi premiado, em Cannes, com uma peça-fantasma: atire a primeira pedra aquele que nunca deu ou tentou dar um migué em Cannes.
Isso é tão verdade que, no caso da DPZ, ocorrido no século passado, ainda que a agência tenha sido punida, com a perda do prêmio, o mercado absorveu o fato com naturalidade. Poderia acontecer o mesmo com a DM9, este ano. Só que não.
Se o caso do KY, de 1994, serviu de alerta para que se estabelecesse algum limite para a cara de pau, o caso de agora foi muito além de qualquer razoabilidade, mesmo para a habitual tolerância com os migués.
O vídeo distribuído anonimamente, que denuncia o caso, detalhando a montagem de uma farsa, que inclui reedições adulteradas de uma reportagem da CNN e da fala de uma senadora norte-americana num TED Talk, induzindo os incautos a crerem que se referiam ao case inscrito, não deixa dúvidas: trata-se de um crime.
Em nota oficial, a agência diz: “Constatamos que houve uma série de falhas na produção e no envio do videocase que acompanha um dos nossos cases premiados no festival. Por essa situação, queremos deixar, desde já, registrado o nosso pedido de desculpas”.
Constatamos? Quando? Soa patético falar em “constatação” só agora, de algo que, em tese, terá sido aprovado em diversas instâncias da agência, antes de ser inscrito em Cannes. “Uma série de falhas”? Só se forem falhas de caráter. Porque, pelo que se sabe, o videocase foi primorosamente editado para ficar exatamente do jeito que ficou.
Trata-se de uma obra-prima de estelionato intelectual. Quanto ao pedido de desculpas, da minha parte, só aceitarei depois que ficar claro ao que se refere.
“Acreditamos que este episódio reforça não apenas a importância de aprofundar a discussão sobre a aplicação de novas tecnologias, como o uso de IA na indústria publicitária, mas, sobretudo, reafirma nossa convicção de que o sucesso também é reflexo da forma como trabalhamos e interagimos”, conclui o comunicado.
Vamos lá: em primeiro lugar, o episódio reforça, sim, a necessidade de aprofundar a discussão, mas é sobre a ética dos nossos negócios e a índole de quem é responsável por eles. É disso que trata “a aplicação de novas tecnologias, como o uso da IA na indústria publicitária (...)”.
Com relação à sentença final, confesso que não entendi. O que significa “reafirma nossa convicção de que o sucesso também é reflexo da forma como trabalhamos e interagimos”?
Isso me parece um tiro no pé: ganhar um Grand Prix é um sucesso, sem dúvida. Ganhar um Grand Prix com um case fajuto será, então, “reflexo da forma como trabalhamos e interagimos”?
Stalimir Vieira é diretor da Base de Marketing
stalimircom@gmail.com