A ética evolui melhor sob os holofotes

As “campanhas fantasmas” não são novidade nos festivais de publicidade — e tampouco exclusividade de Cannes. Em praticamente todos os certames internacionais, surgem trabalhos que nunca foram veiculados de fato ou, ainda, que se utilizam de fatos e recursos que seriam inviáveis no dia a dia das agências.

Isso acontece porque os prêmios têm valor simbólico e prático: ajudam agências a conquistar clientes e elevam carreiras de profissionais como uma espécie de vitrine criativa. O troféu é, em muitos casos, mais do que reconhecimento; é ferramenta de projeção.

Por isso mesmo, não surpreende que, em alguns casos, os festivais destaquem peças que ultrapassam os limites do que se vê nas ruas, plataformas e mídias do cotidiano. Cannes, nesse sentido, é como um circuito de Fórmula 1 da criatividade — ali se testam os protótipos mais ousados da comunicação.

Nem tudo o que vemos no Palais ou nos circuitos automobilísticos está pronto para utilização imediata do mercado, mas quase sempre antecipa tendências que, um dia, serão absorvidas por ele.

No entanto, em 2025, o ‘Anel de Giges’ — aquele da metáfora platônica, que torna seu portador invisível e, portanto, tentado a agir sem ética — simplesmente caiu. Há registros de peças e campanhas fantasmas desde sempre. Não é que hoje ficou mais fácil de descobrir. É que o número de peças inscritas cresceu geometricamente e, consequentemente, as peças fantasmas, de vários países e empresas.

O gigantismo da edição (26.753 inscrições de 90 países em 30 categorias) não impediu que algumas campanhas e peças fossem apontadas como ilegítimas. A parte boa da história é que os principais envolvidos — agências, anunciantes e o próprio festival — agiram com a grandeza que o momento exigia: reconheceram publicamente os erros, devolveram prêmios e assumiram o compromisso de reformar seus procedimentos.

Sem esse comportamento ético, dificilmente teríamos uma solução sustentável. Não há fiscalização planetária capaz de impedir desvios em um sistema tão amplo e complexo. O que há — e precisa ser reforçado — é responsabilidade individual e coletiva. Ética não é um regulamento rígido como o de um condomínio. É um pacto social, dinâmico, que se adapta aos desafios e às crises. E é justamente nas crises que a ética evolui.

Ao expor suas vulnerabilidades, Cannes iniciou um movimento importante. As novas normas anunciadas para 2026 — como o sistema híbrido de checagem humana e com IA, o conselho de integridade independente e o manual global de conduta para uso de IA — apontam para uma nova era: a da “integridade criativa”.

Como disse Simon Cook, CEO do Lions, “esses padrões renovados refletem nossa responsabilidade de oferecer uma plataforma e proteger o valor da criatividade, além de reforçar que a excelência criativa deve ser sinônimo de integridade criativa”.

O Brasil, protagonista nessa edição como o Creative Country of the Year, também mostrou maturidade. Mesmo com a retirada de campanhas problemáticas, seguimos entre os países mais premiados do mundo. Nossas agências, anunciantes e profissionais não se esconderam. Ao contrário, responderam com integridade e altivez. Todos, agências e profissionais, têm um histórico profissional de que só podemos nos orgulhar.

Nos anos 1990, quando os festivais ainda julgavam poucas categorias e campanhas majoritariamente em mídia tradicional, já havia fantasmas circulando. Hoje, a escala e a sofisticação são maiores.

Também é maior a consciência da responsabilidade de cada ator nesse ecossistema. Afinal, uma classe que conseguiu se mobilizar e se autorregulamentar em processos muito mais difíceis e sofisticados (como no caso do Conar), já provou que tem maturidade suficiente para encarar e superar seus erros.

O que vimos em 2025 não foi um colapso de valores. Foi um ajuste de rota. Certamente para melhor.

Emmanuel Publio Dias é professor decano da ESPM e coordenador do Young Lions Brazil