A favela chegou! E agora?
Aterrisagem autorizada! Imagine você, um negrinho favelado, filho de um pedreiro baiano, desembarcando no maior festival de criatividade do mundo? Acompanhado de ninguém menos que o presidente da favela (@pretozeze) e sendo reconhecido pelo seu trabalho no Brasil na luta por pluralidade e pela potencialização da negritude através da publicidade.
Daria um filme, seria algo parecido com “The Fresh Prince of Bel-Air”, com uma trilha que contaria com nomes como Racionais Mc’s, Djonga e Rincon Sapiência, embalando as aventuras do favelado que chegou no Cannes Lions para viver intensamente a semana mais glamurosa da publicidade mundial.
Porém, além dos looks de verão e do passaporte, trouxe na mala também a curiosidade e a preocupação de observar como agências e anunciantes do mundo todo estão abordando temas como a diversidade e a inclusão. Logo no primeiro dia, me deparei com muitas narrativas pretas sendo premiadas e indo para o shortlist. Uma felicidade acompanhada de tristeza por saber que, em sua grande maioria, essas histórias estavam sendo narradas e criadas por mãos e cabeças brancas.
Chego no festival com o sentimento de que só posso sair daqui com excesso de bagagem de referências, estudos e momentos que irão me ajudar a potencializar ainda mais vozes negras através da publicidade. O mercado que tanto encanta e que tanto “faz de conta” está se importando com a pluralidade e deixou claro que as narrativas raciais serão bem premiadas (voltarei aqui no final para te contar). Porém, temos a certeza de que essas narrativas ainda estão sendo escritas e premiadas por profissionais brancos. Espero estar enganado e, em breve, me deparar com a tradicional foto da equipe das agências premiadas com o seu mais novo leão de estimação e a sua equipe cheia de pluralidade e rostos iguais ao meu. Afinal, foto de equipe com pessoas iguais a mim vem se tornando cada vez mais escassa por aqui, né?
E o que você acha disso?
Tenho certeza de que, dentro de todas essas agências grandiosas e premiadas, possuímos um negrinho cheio de sonhos e criatividade pronto para criar e ilustrar sua própria narrativa e suas próprias dores. E acredite, sabemos que nossas dores e nossas histórias ganham Oscar, dinheiro e até alguns leões em Cannes.
Parafraseando a Samantha Almeida, tenho certeza de que seremos a última geração dos primeiros. “Ôh sorte de estar no lugar que outros profissionais pretos pisaram e foram premiados. Poucos, é verdade, porém integrar um seleto grupo de publicitários pretos e favelados, que atravessaram o oceano para ver de perto o maior festival de criatividade do mundo, não tem preço!
Na verdade, tem e é pago em euros. No entanto, tenho a certeza de que tudo isso será muito importante na construção de referências que irão potencializar ainda mais projetos afrocentrados, com os quais eu esteja envolvido. Volto em breve com mais um pouco do que um preto e favelado está vendo e vivendo em um lugar que antes era tão longe quanto Wakanda! Eu sei, você deve ter pensado: “Wakanda nem existe!”. Pois é, para quem quase passou fome, participar do Cannes Lions era tão distante e inexistente quanto Wakanda.
Julio Beltrão é diretor artístico da Mynd