A IA mostra a cara. E ela é feia
Se a Maria Rita topou a ideia e aprovou a realização, e os descendentes do Belchior aceitaram o uso da música, quem sou eu para discordar deles?
Não vou, portanto, entrar no mérito se usar uma espécie de Elis Regina ressuscitada num anúncio de carro e uma música exatamente irônica e contestatória ao que o roteiro afirma é ou não é adequado. Vou me deter no como.
Começando por reconhecer um grande mérito na peça: mostrar para todos nós que, em determinadas aplicações, a inteligência artificial é (ou ainda é) uma merda.
Se aquilo é o melhor possível, com toda a grana que, imagino, esteve disponível para usar na produção, daqui a alguns anos vão dar tanta risada de nós, quanto damos hoje, assistindo animações dos anos 1970.
Lembro-me que há muito tempo, talvez no aniversário de um ano da morte de Elis Regina, o “Fantástico” fez uma homenagem a ela, produzindo uma montagem em vídeo, em que Elis aparece cantando entre nuvens (digamos que como se estivesse no céu).
Breguinha, mas tudo bem, embora duvide que Elis, mulher à frente do seu tempo, aprovasse a bobagem. Talvez não tenha nada a ver uma coisa com a outra, mas me veio à memória uma outra “ocorrência” na tevê.
Era um programa desses da tarde ou de fim de semana.
A apresentadora quis homenagear uma celebridade que havia tido um filho recentemente. Para isso, contratou uma especialista em fazer bonecos em silicone. Inspirada em fotos da criança, a moça criou uma reprodução perfeita do pequeno.
Chegou o dia da surpresa. Ao vivo, a apresentadora entregou à mãe, um “defuntinho” do próprio filho. Patético. Voltando ao “como” do nosso comercial, digo que, fã de carteirinha, tenho a imagem de Elis Regina em toda a sua carreira vitoriosa, muito presente. Fosse dotado para o desenho, a desenharia de olhos fechados.
A Elis da IA é uma coisa inventada pela IA, uma interpretação “morta”, que tenta dar vida à uma pessoa falecida. Então, não é a Elis; talvez o fantasma da Elis, se existir, seja mais humano que as imagens produzidas.
Como sou do ramo, sei muito bem que, a partir de um certo momento, as decisões se tornam irreversíveis, sob pena de ocorrer uma catástrofe operacional e financeira. Já passei por isso.
Na hora de escolher entre prejuízos objetivos ou futuras críticas (como as que estou fazendo agora), tocamos o barco em frente.
Certamente, os profissionais envolvidos perceberam que a interpretação que a IA fez do que seria Elis Regina é tristemente limitada e remete a um boneco de mola.
Se terá entendido, no entanto, que bastaria “diluir” essa falha técnica numa sequência clássica de situações “sentimentais”, que tudo viraria um sucesso.
Como, de fato, virou. Guardandas as devidas proporções, do mesmo modo como, também, costumam virar sucesso novelas turcas e mexicanas.
Esse comercial é emblemático para compreendermos o novo padrão “emocional” que o uso da IA estabelece.
Uma estética gelada, uma narrativa literal, e matematicamente focada num alvo lógico, criado para atender aos anseios de uma “sensibilidade” gerada pela própria IA. Ou seja, embora eu seja, economicamente, um potencial comprador de um carro da Volkswagen, a minha opinião, a bem da verdade, já não tem nenhuma importância.
Stalimir Vieira é diretor da Base de Marketing
stalimircom@gmail.com