A treta do ano
2021 ficará marcado na história da propaganda brasileira por um acontecimento inédito: uma rebelião de clientes endinheirados contra seu banco, por conta de uma ação de marketing. Não lembro em minha trajetória, de mais de quatro décadas como publicitário, de nada parecido. A intenção aqui não é apontar culpados pela cagada, que redundou num vídeo patrocinado pelo Bradesco, em que influencers sugerem que não se coma carne às segundas-feiras, provocando a ira (no meu entender, suspeitamente, exagerada) de pecuaristas.
A questão que se apresenta, de todo modo, revela uma realidade assustadora: o marketing se tornou um negócio muito perigoso. Se durante décadas, profissionais qualificados desenvolveram métodos e critérios para a aplicação de uma mistura de arte e ciência, que se tornaria uma das molas propulsoras do capitalismo, na busca de mercado para as marcas, o advento avassalador das redes sociais está transformando todo esse empenho num grande bundalelê.
Tradicionalmente protagonistas de qualquer ação focada na comunicação de seus clientes, as agências, já faz um bom tempo, passaram a ser coadjuvantes e, não demora, se não revisarem os conceitos de seus negócios, serão meras figurantes na relação das marcas com os mercados.
Senão, como explicar esse episódio de perda de controle tão espetacular? Não é difícil imaginar uma situação como a ocorrida. Aprovada uma grande campanha institucional, com forte presença na chamada mídia convencional, trata-se de estendê-la ao que, antigamente, chamávamos de formadores de opinião. Com a diferença de que, antigamente, eles eram jornalistas ou artistas consagrados, por exemplo, a quem conhecíamos o suficiente para estarmos certos da pertinência de suas contratações. Hoje, são milhares dos chamados influencers, a grande maioria sem noção do arco de implicações que envolve criar conteúdo para terceiros. Situação que deixa marcas construídas com rigor profissional, de repente, à mercê do mais puro amadorismo de marketing, num nível incalculável de risco. O fato de as agências não comportarem economicamente abraçar tamanha capilaridade, torna frouxos, controles tradicionalmente rigorosos.
Por isso, anunciantes recorrem à soluções domésticas, o que não diminui o risco de equívocos graves, por conta da falta de traquejo de suas equipes no desenvolvimento e na avaliação de conteúdos, uma vez que seu foco reside principalmente na análise de dados. Essa imprecaução tem levado a consequências, que vão desde o pesadelo de ter pago, inadvertidamente, alguém para falar o que não deve sobre o negócio dos clientes de um banco, até o uso da verba de uma montadora para patrocinar um vídeo em que um veículo da própria marca atropela uma criança. Uma verdadeira roleta-russa.
O ocorrido deve inspirar boas reflexões. Agências e anunciantes precisam repensar o alinhamento de seus papéis, equacionando uma solução economicamente racional para todos, a fim de garantir a histórica e necessária comunhão entre desenvolvimento e salvaguarda das marcas. É preciso restabelecer um espírito de confiança recíproca, baseado no bom senso, para que marketing e publicidade (mesmo nas redes sociais) sejam negócios absolutamente seguros.
Stalimir Vieira é diretor da Base de Marketing (stalimircom@gmail.com)