Meus três ou quatro leitores, entre eles alguns de privilegiada memória, devem me ajudar me avisando que já contei esta história. O mais absurdo é que eu não consigo me lembrar depois de tantos anos fazendo esta coluna toda semana, do que foi que escrevi. Para falar a verdade, estou caminhando para aquela fase de não ter ideia do que eu comi no jantar de ontem. Nem depois. Mas a falta de memória é um dos menores problemas da idade. Esse é um assunto que fica para uma próxima vez, se eu me lembrar, é claro. Sobre esses problemas que a velhice traz, um amigo me disse que a indústria farmacêutica acaba de lançar um novo e maravilhoso remédio. Uma mistura de Viagra com Ginkgo Biloba. Um é para garantir a ereção. O outro é para ajudar a descobrir qual a utilidade dela. Voltando ao tema, a necessidade (deliciosa) de escrever uma vez por semana significa o risco de fazer algumas reprises.

A nobre editora deste jornal, cuja memória causa complexo de inferioridade em elefantes, de vez em quando me pega contando o que já contei. Nunca sei se fico bravo ou me sinto homenageado. Mas vá lá, este caso me dá a sensação que é inédito. Pelo menos neste jornal. Bem, vá lá. Vamos à história antes que eu me esqueça. É de uma das pouquíssimas vezes em que fui macho o suficiente para abrir mão de um cliente e recebi de volta a vingança mais consciente e elaborada de minha vida. O episódio encerra alguma lição, mas evidentemente não me recordo de qual poderia ser. Era um curso de inglês, cujo dono era o pentelho mais pentelho que a indústria publicitária jamais acolheu. E olhe que a concorrência sempre foi forte, de ambos os lados da mesa. O tipo não gostava de nada, reclamava de tudo, era irônico, mexia em texto e leiaute dezenas de vezes. Cercava-se de colaboradores e amigos pródigos em dar palpites, pedia opinião para quem entrasse na sala dizendo que tinha de ouvir o “público”, me chamava de artista e de vez em quando me falava com aquela falsa humildade que dá vontade de esganar: “eu não sou especialista como vocês, mas como público acho que…” Um grande filho da puta, como se vê.

Um dia, em nome da sanidade mental da equipe e antes que eu pulasse no pescoço dele ou pela janela, resolvemos abrir mão da conta. A sede do cara parecia um bunker, escuro e pintado de cores sombrias e foi lá que comuniquei que tínhamos decidido não mais trabalhar para ele. Foi uma explanação bastante educada, embora minha vontade mesmo era dizer para ele enfiar a conta pelos canais competentes. Mas fui fino. Falso, mas fino. Para nossa total surpresa, o cara não aceitou ser dispensado. E mais: pediu um milhão de desculpas, disse entender nossa situação e compreendeu que suas atitudes pudessem trazer desânimo à equipe. E pediu nova chance. Abestalhados com tanta humildade, arrependidos até de ter falado mal dele pelas costas, voltamos atrás da decisão, comovidos. E naquela tarde mesmo recebemos demoradíssimo e detalhado briefing para uma nova campanha. Que o puto passou pessoalmente, diante de toda sua equipe.

Trabalhamos feito condenados e semanas depois apresentamos uma imensa e elaborada campanha para o cidadão, sua equipe e mais duas velhotas que trabalhavam com ele e foram apresentadas como especialistas em pedagogia moderna ou coisa que o valha. Após demorada apresentação, com o auxílio dos mais avançados recursos audiovisuais da época, fomos informados que teríamos uma resposta na semana seguinte. Saímos comemorando antecipadamente. Dois dias depois chega na agência uma carta – uma carta! – assinada por uma das senhoras, a menos qualificada, literalmente cagando em cima da campanha, da agência e dos profissionais da empresa. O mínimo que estava escrito era: “estamos surpresos pelo fato de que uma agência de publicidade, que se diz reputada, tenha apresentado material tão inadequado e primário”. Enfim, não só nos chamando de moleques idiotas como de profissionais despreparados, tudo isso num português de repartição pública, cheio de “por conseguintes” e outrossins. Conclusão: o escroto quis dar a última palavra. E deu.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)