Boni agradece
O lançamento de ‘O Lado B de Boni’ (Editora BestSeller, 2024), na noite de 20 de agosto, foi a consagração da história do que é hoje a moderna televisão brasileira, e das pessoas que, vindas do rádio e até do circo, enfrentaram as mais duras circunstâncias — principalmente a falta de dinheiro e o permanente atraso dos salários — para transformar aquela telinha em preto e branco num veículo que mudou a história do entretenimento no mundo.
Boni se apresenta como sendo apenas um deles, dando o crédito, ao longo de todo o livro, às pessoas que o ajudaram e até às pessoas que teve de enfrentar para mudar as emissoras onde trabalhava. É mais do que uma história de vida; é o testemunho de um período da existência de nosso planeta, que os futuros historiadores terão de consultar para ver como as coisas acontecem.
Se alguém lança um segundo livro para falar de suas próprias experiências, não se pode deixar de lê-lo. Tive a coragem de ir à sua noite de autógrafos na Livraria da Travessa do Shopping Iguatemi, em São Paulo, sabendo que iria enfrentar uma multidão. Foi uma noite em que toda a história do rádio, da televisão e da propaganda brasileira estava presente. Por sorte fizeram uma fila também para os idosos, e foi onde me meti, mesmo não me considerando um. Parece que Boni preservou as suas agendas das décadas de 1950 a 1990, e anotou os nomes de todas s pessoas que passavam em sua vida, os locais, e usou a memória para recriar as circunstâncias. É um trabalho memorialista de primeira qualidade. Desmente o que Ruy Castro diz sobre as autobiografias, “é como se a pessoa se olhasse num espelho e visse um vitral”.
O que se vê é um jovem de origem extremamente humilde que cresceu com uma obsessão por trabalhar em rádio e passou fome, literalmente, para conseguir uma primeira oportunidade. Vi muito isso acontecer com a DPZ, quando surpreendíamos, pela manhã, algum jovem que, vindo de outro estado, dormia na porta da agência, para ser atendido. Posso até contar a história do copresidente de uma das maiores agências atuais, que, encerrado seu período de estágio na DPZ, continuou comparecendo durante alguns meses à Avenida Cidade Jardim, quase como um funcionário clandestino.
Procurava não ser visto pelos diretores, até que o Flávio Conti resolveu dar um emprego para ele. Boni confirma o que o Petit costumava dizer, “Só contrato para a criação alguém que passou fome na infância”. Claro que os jovens de hoje não vão memorizar todos os nomes citados pelo Boni no desenvolvimento do rádio e dos primórdios da televisão. E são centenas. Senti falta dos nomes do Blota Júnior, do Edmundo Gregorian e do Nhô Totico. Há um caso do Gregorian que gostaria de contar. Antes da existência das gravações, estavam ele e o Blota Júnior no estúdio da Rádio Record fazendo os efeitos de som ao mesmo tempo que uma novela estava sendo transmitida. Só havia um microfone, compartilhado pelo ator, pela atriz e pelo pessoal que criava os efeitos de som. Gregorian havia aprendido, tocando castanholas, a imitar o tropel de um cavalo. Depois de um trecho, ele se afastou do microfone e sussurrou no ouvido do Blota Junior, “Quatro anos na Sorbonne para ser cavalo no Brasil”…
Mesmo quem não conhecia o Boni e o Walter Clark, e estava acostumado com a improvisação da televisão brasileira, sentia que alguma coisa começava a acontecer. A primeira foi a diminuição dos intervalos comerciais, que chegavam a durar até meia hora; em seguida veio a preocupação com os cenários e o casting; as garotas-propaganda, que chegaram a ser estrelas por mérito próprio, passaram a ser maquiadas e ter um guarda-roupa variado; sai o flip-chart e entra o slide, mais bem elaborado; e quando começaram as transmissões de externas, saem as pessoas muito feias, sem dentes ou sem camisa, escolhidas aleatoriamente pelos câmeras.
Corria a lenda que o Boni havia decretado que “televisão é um veículo onde só se transmite coisas e gentes bonitas” e os câmeras tinham de obedecer; esse diktat, por mais lendário que fosse, ajudou as agências a vender aos clientes comerciais mais elaborados e com um custo maior. E quando veio o Jorge Adib, com quem trabalhei pessoalmente na Colgate-Palmolive, cria-se o merchandising e sai o domínio dos câmeras e cenaristas sobre que produtos devem aparecer em cada cena.
Se há alguma crítica que se possa fazer ao livro do Boni, é a que ele cita três vezes a frase “O primeiro soutien não se esquece”, sem atribuí-la à verdadeira autora, que é Camila Franco. O capítulo de agradecimento ao Rodolfo Lima Martensen é, provavelmente, a mais comovente homenagem que já se fez ao grande publicitário da Lintas. Creio até que a ESPM deveria agora, em retribuição, prestar uma homenagem também ao José Bonifácio de Oliveira, que continua no Conselho de Administração da escola, e comparece às reuniões sempre que possível. Acredito que ele se orgulhe muito daquilo em que se transformou a salinha da Escola de Propaganda, da Rua Sete de Abril, cedida pelo Pietro Maria Bardi, diretor do Masp, ao Rodolfo Lima Martensen e ao Renato Castelo Branco, para lançar a semente daquela que viria ser a mais importante escola de comunicações da América Latina. Olha aí uma sugestão, Armando Ferrentini e Dalton Pastore.
Roberto Duailibi é escritor, publicitário e um dos fundadores da DPZ