Bozó

Você lembra do Bozó? Bozó era um dos mil e um personagens de Chico Anysio. Personificava um oportunista que andava por aí com o crachá da Globo bem visível. Bozó tinha um caráter duvidoso. Mais do que representar alguns executivos da época, seria o espelho de algumas figuras de hoje, que conseguem fazer a confusão entre ser e estar.

Existem Bozós por aí. Um dia ainda vamos entender coletivamente e reverenciar toda a genialidade e grandiosidade desse artista, Chico Anysio. Mas voltemos ao Bozó. O crachá mudava tudo para ele e para quem o rodeava.

Essa reflexão é cada vez mais importante, pois o mundo corporativo cresceu, sofisticou-se, mas ainda cultiva Bozós. O ser humano, orgulhoso de seu desempenho, sente-se embevecido de seu cargo, mas esquece que a qualquer momento o chão pode sumir embaixo de seus pés. Só nos resta a beleza ou a melancolia de sermos quem somos e a sorte de termos ao lado alguém que nos ama. O resto é vaidade.

Lá no interior temos uma frase boa: o mundo dá voltas e tudo depende como você desce do bonde. “Ser” é algo que ninguém tira de você. O estar é o acaso e sorte.

Confundir quem se é por onde se está é a razão para muita insatisfação e tristeza pessoal e corporativa. Hoje você pode estar c-level, ou estar d-level, mas você é o quê? Gentil, doce, perspicaz ou impaciente, traiçoeiro, arrogante?

Nas frases do dia a dia de trabalho você usa mais o “eu”, ou o “nós”? Estar em um cargo é algo transitório. Uma fantasia, um sonho ou também pesadelo. Não resiste a uma turbulência. E como tudo, passa.

A confusão entre esses dois estados de consciência é muito comum. Acreditar que se é, o lugar onde está, sugere uma holografia que, se faltar energia, desaparece. E penso nisso, pois leio com perplexidade que determinadas empresas adotam uma nova agenda em que anunciam que não vão mais cuidar da diversidade e vão reduzir seu peso nas empresas e nas suas metas. Várias empresas globais, modernas, estruturadas pelo mundo e pelo jeito repletas de Bozós.

Vi com surpresa, no Superbowl, que haveria uma frase sobre o racismo dentro do campo. Porém, com a presença de gente do governo tiraram o protesto. Daí a pergunta: a coisa toda de ativismo empresarial não era de verdade? E aquele monte de PR e notas de imprensa anunciando a diversidade e inclusão? Não era para valer?

A gente aprende em casa que o bem que se faz não se deve mostrar. Mas a foto no jornal, ok. Só que agora vai acabar? A inclusão depende do resultado da eleição? Fazer a coisa certa, que é prosperar coletivamente, não era um sentimento e uma missão inegociável? Essas empresas gigantes que anunciam uma “nova agenda” expõem uma cultura meio Bozó.

O governo americano liberou as suas empresas do compliance relativo a falcatruas realizadas fora do país. Ou seja, as empresas podem usar qualquer meio para prosperarem. Fora dos Estados Unidos. Liberou geral.

Os executivos vão aderir? As múltis vão permitir símbolos supremacistas em nome da liberdade de expressão? E aquela “masculinidade” que as empresas de tecnologia pedem para voltar, vai mesmo? É preciso olhar pela lente do tempo para se ter a noção exata se o mais importante é ser ou estar. São dois os caminhos para escolher: vai ser Chico Anysio ou Bozó?

Flavio Waiteman é sócio e CCO da Tech&Soul
flavio.waiteman@techandsoul.com.br