Eu vou contar como conheci o inferno. Não se trata de uma metáfora. Estou falando do inferno bíblico, de onde não se sai. A freira Josefa Menendez explica: o inferno é cheio de corredores longos, sombrios e com fogo eterno. Além disso, cada pessoa condenada perde a capacidade de sentir amor, felicidade, esperança ou qualquer coisa além de crueldade e miséria. Em um dos trechos escritos por ela, há o relato de uma alma que chora compulsivamente imaginando como seria sentir amor novamente. Pois eu conheci onde isso acontece. Digo mais: vi com estes olhos que um dia a terra há de comer, um retrato desse lugar que é a ameaça permanente aos ímpios. Como diria minha finada avó, mulher de linguajar finíssimo: o inferno é foda! Se algo me pudesse convencer de fazer o bem nessa vida, de não desejar a mulher do próximo, seria me ameaçar repetir a experiência. Abram os ouvidos, oh ímpios! Vou contar o que passei.

Eu trabalhava na Thompson e estava numa reunião em Miami. Aconteceu uma emergência no Rio e me pediram para antecipar a volta. Minha passagem era Varig e a filial de Miami da empresa me tirou qualquer esperança de antecipação da viagem. Era alta temporada e nem o Rubem Berta conseguiria um voo sem reserva, exagero da gerente local, mas dramático o suficiente para que eu entendesse que estava ouvindo um não definitivo.

Como bom brasileiro, tentei todos os pistolões, inclusive ir para Nova York e de lá para o Brasil. Mas nenhuma opção se encaixava no prazo que eu tinha para chegar ao Rio de Janeiro. Estava entrando em desespero quando uma secretária de nosso escritório local disse que conhecia a gerente do escritório da Pan Am e iria pedir uma ajuda. A tal amiga de nossa secretária era uma velinha, que vestia um xale escuro e meias pretas. Só não digo que usava vassoura para chegar ao trabalho porque era uma boa pessoa. Ao ouvir nosso pedido por uma passagem ela disse que só tinha um lugar no próximo voo, mas se eu tivesse o mínimo juízo não deveria aceitar. Era preferível, disse-me ela, perder o negócio ou o emprego. Mas eu estava desesperado e não quis ouvir.

A Thompson precisava de mim. E eu não poderia imaginar qual a razão desse voo em particular ser tão ruim. Um inocente. A velhinha me explicou que o avião todo (um 747) estava reservado a excursões de uma grande operadora de turismo brasileira. E que eu teria de viajar junto com as crianças, cuja maioria estava sem os pais, aos cuidados de guias da empresa. Achei um exagero. O que umas criancinhas poderiam ser de tão perigosas?

Ela deu um sorriso que significava: “espere para ver!”. Poucas horas depois embarquei. Para a pior viagem de minha vida. Era a volta. Os guias já não falavam mais com as crianças e elas, por sua vez, já tratavam os guias pelos mais escabrosos apelidos que se pode imaginar. E gritavam, jogavam coisas uns nos outros. Trocavam insultos preconceituosos, racistas, violentos. Os mais adolescentes se beijavam descaradamente, os mais infantis corriam entre as poltronas aos gritos.

Eram centenas. Tudo pulando. As comissárias serviram o almoço como quem serve ração. O que era justíssimo em relação ao grau de animalidade. Chicletes foram grudados em cabelos, os banheiros ficaram imundos em menos de duas horas, o filme foi acompanhado de insultos aos vilões nos termos mais mimosos: “Filho da puta!”, “Viado!” Teve até um “corno” que eu não me lembrava que pudesse ser um adjetivo ofensivo a um personagem de desenho animado.

Em três horas de viagem, eu consegui me enturmar com os guias, que se homiziaram a um canto e ficamos tentando conversar em meio à balbúrdia. De vez em quando vinha uma das crianças fazer uma queixa qualquer, normalmente atendida com total indiferença por parte dos adultos. Veio até uma fada reclamar que tinham lhe roubado a varinha. O comissário-chefe, um filósofo, acalmou a menina: um dia você acha. Quando chegamos no aeroporto eu estava considerando Herodes um justo.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)