Crise de consciência
Vi recentemente o filme ‘Como vender a Lua’. Confesso que não era bem o que eu queria assistir, mas acabei indo. Mudei de ideia depois de vê-lo.
Saí do cinema feliz por ter sentido coisas semelhantes ao que já se passou comigo nesta longa e emocionante profissão. Não sou mais publicitário há muitos anos, mas essa minha derivação para a arena de gestão de marcas, ou branding, não me afastou do planejamento de comunicação. Ao contrário, me aproximou dessa atividade de outro jeito. Como se eu tivesse saído da sala onde o jantar é servido e ido para a cozinha. É lá que eu ajudo o chef a se inspirar e posso conversar com ele sobre os ingredientes que ele vai considerar.
Às vezes, tenho receio da reação do cliente à primeira garfada. Prefiro nem olhar pela fresta da porta. Meu medo não é ele não gostar, mas gostar de algum prato que esconde alguma malandragem do chef ou minha. É aí que reside a crise de consciência, pelo menos a minha, porque não respondo pela do chefe.
Essa crise de consciência sempre me acompanhou, por muitas décadas, e fico muito feliz por conviver com ela até hoje. É como se fosse um superego profissional, sempre com o botão ligado no on, como todo superego, aliás.
É disso que o filme trata. E é nessa corda do meu coração que esse filme tocou. E não o romance que rola no filme.
Em 1969, a Nasa preparava o lançamento da Apollo 11, para fazer o primeiro homem pisar na Lua e liderar a corrida espacial contra a Rússia. Que, aliás, já havia dado um passo na liderança em 1957, com o astronauta Gagarin a bordo do pioneiro Vostok 1. É dele a frase: “A Terra é azul”, quando vista lá de cima.
Imaginem a Nasa, em pleno governo Nixon, precisando recuperar o atraso, depois do desastre da Apollo 1. Uma publicitária de poucos escrúpulos, Kelly Jones (Scarlett Johansson), contratada por uma instância do governo Richard Nixon, descobre brechas comerciais no projeto de lançamento. Astronautas desfilando com Ômega nos pulsos, Tang como parte da dieta na nave.
Já estava tudo planejado para o voo. Mas, e se não desse certo e não chegassem à Lua. Ou, pior, e se não pisassem nela para enviar a frase célebre: “Esse é um pequeno passo para o homem, mas um gigantesco salto para a humanidade”?
Simples. Monta-se uma paisagem lunar num estúdio, atores simulando baixa gravidade, ao lado de uma geringonça que lembra a cápsula pousada na Lua e pronto. Estava preparado o plano B.
E é nesse clima de absoluta simulação que se dá a crise de consciência da Kelly Jones. Desmonta-se o plano B, num clima de tensão. Mas como sabemos, a Apollo 11 completa com sucesso a viagem. E a frase célebre, pronunciada por Neil Armstrong, ecoou por muito tempo.
Mas, eu quero voltar à Terra. Porque sinto que a ferida continua aberta! Quantos e quantos “planos B” estão presentes em iniciativas de mercado que nunca “pousaram de verdade na Lua”? Vocês devem conhecer muitos também. Celebridades falando de carne que não comem, sorvetes que têm uma história de família que nunca existiu, indústria de automóveis que falsificaram teste de emissão de poluentes… Quem puder folhear o livro “Brandwashed - O lado oculto do marketing” do Martin Lindstrom, vai encontrar mais coisas interessantes sobre esse assunto.
Felizmente, há duas razões para acreditar que estaremos cada vez mais protegidos contra esses “planos B”. Primeiro porque a engenharia digital tornou a perna curta das mentiras cada vez mais curtas. Em algum lugar, remoto que seja, alguém, numa tarde de sábado, talvez vá descobrir alguma encenação e disparar uma mensagem para os amigos. Pronto, está aceso o rastilho de pólvora. Pobre do autor do “plano B”.
A segunda razão é a evolução de um capitalismo cada vez menos impiedoso e menos desalmado. Um capitalismo guiado por princípios de respeito ambiental, compromissos sociais e de cuidadosos padrões éticos. Bem-vinda a cultura ESG. Talvez, ela não blinde totalmente, mas certamente vai desidratar os insidiosos “planos B”.
Resumo: num mundo como esse em que estamos entrando vai ser muito mais difícil alguém pretender “vender a Lua”.
Jaime Troiano é CEO da Troiano Branding
(jaime@troianobranding.com)