Desenhos cegos e feios

Sempre amei desenhar, mas, conforme fui saindo da infância, achei que não desenhava bem e parei completamente (alguém aqui deve se identificar). Isso me levou a experimentar a fotografia e o vídeo, que naquela época, anos 2000, ainda tinham um caráter de retratar a realidade. Foi já mais velha, trabalhando com vídeo e fotografia profissionalmente, que ouvi falar de um curso chamado “Desenhando com o lado direito do cérebro”. Achei interessante e uma oportunidade de retomar uma paixão antiga, então me inscrevi e voltei a desenhar. O mérito desse retorno está muito relacionado a dois exercícios que aprendi nesse curso e pratico até hoje: o “desenho cego” e o “desenho feio”.

Explico: desenhos cegos são aqueles em que você desenha sem olhar para o papel - se você não consegue evitar a curiosidade, pode até furar uma folha com o lápis que vai usar, para não ver o que está embaixo. O olhar é apenas para o objeto/a imagem que está desenhando.

Já os desenhos feios, na maioria dos casos, são aqueles que não são considerados bonitos pela maioria, e tudo bem, a beleza é diversa. Esses desenhos me parecem ser o oposto do que vemos quando rolamos o Instagram, com pessoas querendo parecer bonitas, usando muitos filtros para deixar a realidade mais “perfeita” e satisfatória.

Cada dia tenho me apaixonado mais e mais pelos desenhos cegos e feios, justamente pela estética alternativa que têm. Primeiro, porque você aprende a olhar de verdade para o que está na sua frente, e não para a ideia que você tem daquilo. É a velha história de quando pedem para você desenhar uma casa ou uma pessoa, e todo mundo desenha quase a mesma coisa desde criança, com a imagem já formada na cabeça e não o que realmente se vê.

Nestes exercícios, você não deve se preocupar com o que está saindo no papel, nem com o resultado final, mas sim com o que você está literalmente vendo: as linhas, as formas, os vazios, as sombras e as luzes. Você aprende a curtir o processo sem se preocupar tanto com o resultado, porque, afinal, naquele momento, você não tem controle sobre isso. E o mais interessante: o que sai no papel fica muito mais parecido com a realidade, com suas linhas tortas, erros e acasos. Fica autêntico, com erros lindos que jamais teríamos coragem de assumir se não fossem desenhos cegos. Isso, a meu ver, leva a uma nova forma de representar o mundo, sem copiar ou repetir o que já foi feito. O erro surge como uma construção de algo novo e não como um problema.

Com esse método, você se solta, aprende a olhar, vai descobrindo sua personalidade e a própria estética, mesmo que não esteja desenhando. Isso te leva a olhar de maneira diferente, seja quando você está de férias ou produzindo imagens profissionalmente.

Em um dos meus últimos exercícios de desenho meio cego (em que você pode olhar para o papel, mas não o tempo todo), escolhi desenhar um amigo. Quando terminei, ele me pediu para ver e disse: “Mas esse não sou eu!”. E eu respondi: “É sim! É como eu vejo você”.

Em um momento em que estamos tentando viver em um mundo mais diverso e inclusivo, onde diferentes tipos de corpos e raças tenham voz, não é incrível e animador, para quem trabalha e consome imagens cada vez mais, ter diferentes pontos de vista, estéticas e imagens cada vez mais autorais e não pasteurizadas? Eu acredito e trabalho para que isso aconteça cada vez mais.

Camila Guerreiro é fotógrafa, diretora e produtora de documentário nomeada para o Bafta US