Doze dias de trabalho remoto, devidamente acrescidos de cozinhar, lavar louça, roupas, arrumar a casa – na medida do possível – e “dar aulas” para as filhas. De vez em quando, consigo dar uma escapada e dar uma malhada via aplicativo. Só para compensar a quantidade industrial ingerida de chocolate, paçoca e minha própria “culinária”- dado que consigo desandar até a gelatina. Quando vou meditar, durmo. Quando preciso dormir, não consigo.

Desconfio que a caçula esteja obtendo estimulantes – não é possível conseguir falar e pular tanto por horas a fio. Por precaução, todos os chocolates são 80% cacau – criança nenhuma aguenta. A adolescente já está de quarentena há mais tempo que toda a família. Oscila entre o “está tudo bem” e o “eu simplesmente não aguento mais”.

Do outro lado da tela, o dia a dia das outras famílias se desenrolando. Descobri mais sobre minha colega da Califórnia em um único conference call – em que tivemos a participação das duas filhas, marido e cachorro em crise – do que soube em meses fazendo esses mesmos calls com elatoda a semana. Saio da ligação grata por ter gatos – que não latem – e filhas que já sabem usar o banheiro sozinhas. Também saí da ligação gostando mais ainda dela do que já gostava.

Hoje, fiz mais um happy hour virtual. É segunda-feira e só eu entre as amigas me dignei a aparecer com uma taça de vinho – embora tivesse uma garrafa de água já bem ao lado.

Preciso estudar para minha pós-graduação, mas tem o mesmo efeito da meditação, durmo. O supermercado só entrega daqui a três dias. São mais três dias em tentativas de envenenamento da família – com o que ainda temos na geladeira e despensa. Que ainda bem, serão reabastecidas mesmo que com certo atraso.

É mais do que outras famílias têm no momento. Eu tenho contribuído da maneira que posso com quem está em situação mais vulnerável – ainda assim, sei que é muito pouco perto do que já é e ainda será necessário.

Está claro para mim que vou terminar a quarentena sem me tornar boa cozinheira, professora, atleta, filantropa ou mesmo uma boa bebedora. Mas precisa estar claro também que vou terminar essa quarentena. Portanto, defini um novo plano de que apenas pretendo sair do outro lado. Do lado de lá do medo, da ansiedade, da rotina confusa, do acirramento dos ânimos (o meu inclusive), da radicalização das posições políticas, do ruído constante. Busquei na memória outra travessia, que compartilho aqui.

Há mais de 16 anos, fiz uma peregrinação de mais de 40 dias. Para chegar ao fim, era necessário tomar pequenas – porém boas – decisões todos os dias. Não eram os mais rápidos que chegavam. Nem os mais equipados. Ao contrário, menor a mochila, melhor o caminho. Todos os dias era importante passar vaselina nos pés, passar talco, calçar duas meias para reduzir o atrito e evitar a todo o custo descalçar as botas no meio do caminho. Todo dia um tanto, nenhum dia muito. Chegar, tomar banho imediatamente, confraternizar – sempre! – com quem estaria com você nessa noite e talvez no outro dia. O colega do comprimido, do curativo, do papo, do pan con tomate. Dormir cedo. Começar de novo. O casal de 70 anos que me disse: quem faz a travessia é sua cabeça, não seus pés. Quantas inúmeras vezes pensei: “Chega!” E quantas outras inúmeras vezes: “OK, só mais hoje…”

Dado que eu sequer era religiosa, ou leitora de Paulo Coelho, confesso que fazer o caminho não foi uma escolha minha. O que acabei escolhendo foi seguir caminhando cada um daqueles mais de 40 dias (com paradas para ver festas, para raspar os cabelos e com um ou outro dia perdido em lugares loucos que podem esperar outra ocasião para serem contados). E embora me lembre vagamente da Catedral (a prometida chegada), o que eu realmente não esqueço foi de lambuzar a cara de mil folhas com muito creme na confeitaria, de reencontrar minhas amigas queridas e de me perder no mundo com elas.

Quando ficamos um tempo longe das pequenas maravilhas da vida, do dia a dia, dos amigos, voltar tem gosto de doce. Mal posso esperar. Caminhemos só mais um dia, a cada dia. Todo dia um tanto, nenhum dia muito. E cheguemos juntos do outro lado.

Gabriela Viana é diretora de Marketing da Adobe para a América Latina.