Madrugada fria. Dia quente!

Noite clássica de garoa em São Paulo. Eu e um amigo que vou chamar de Márcio, nos encontramos em um bar na zona central da cidade para matar a saudade. Não nos víamos há anos, pois ele mora nos EUA e não vinha para o Brasil desde a pandemia. Ambos somos pais e para além de nossa obsessão por audiovisual, as questões da paternidade estão sempre presentes em nossas conversas.

Marcio, um homem negro que contrariou as estatísticas, compartilhou uma parte íntima da sua história com seu pai. Falou sobre a ausência paterna na sua formação e ancestralidade, uma história repleta de lacunas e vazios de informação. Uma triste realidade que criou uma névoa em sua identidade que o atormentava para compreender quem ele era com seus filhos hoje.

Compartilhei que estava passando um momento difícil devido ao recente divórcio, recheado de perdas e da dificuldade em aceitar e entender os prejuízos que estava vivendo. Comentei das ausências do meu pai na minha infância e como ele jamais compartilhou as experiências de derrota ou fragilidade, mesmo não tendo o sucesso que propagava, um clássico da classe média decadente que me formou com a sensação de que perder era algo inaceitável e vergonhoso. Começamos a refletir sobre silenciamentos e ocultações que resultaram em uma série de opressões e sofrimentos históricos.

Conversa longa permeada pela nossa obsessão pelo audiovisual, que nos fez pensar sobre o momento atual. Um momento de excesso de informação, onde cada detalhe de nossas vidas parece ser registrado e compartilhado. As novas ferramentas de inteligência artificial intensificam essa disrupção, mas, ao mesmo tempo, a importância de questionar o que está sendo deixado de fora dessas bases de dados. Que tipo de apagamento pode estar acontecendo no nosso tempo?

Pensei nas histórias que a IA não pode alcançar, as emoções que ficam obscurecidas e os momentos genuínos que podem se perder em meio ao ruído dos estímulos impactantes. Se afetar pela simplicidade e a autenticidade da humanidade de cada um, artesanal e aparentemente amadora, tem encontrado uma conexão genuína com a audiência nas redes sociais e isso não é por acaso.

Como diretor, a jornada da parentalidade me faz pensar sobre criação, incluindo a dos filhos e o fazer cinematográfico, com o desafio de construir um mise-en-scène capaz de permitir que o erro aconteça, possibilitar momentos além dos clichês e estereótipos históricos, que recheiam as bases de dados. Nosso papel é cultivar oportunidades para produzir ambientes onde as narrativas não devam ser guiadas somente pelos números e respostas aos estímulos dos algoritmos, pois existe beleza e emoção no imprevisível, nas pequenas imperfeições e nas nuances ordinárias que resistem a serem apagadas.

Acredito que esse é o caminho para uma criação autêntica, onde promovemos uma conexão mais profunda não apenas com nós mesmos, mas também com o outro. A criatividade e a emoção estão nessa fronteira.

Gota é diretor de cena da Magma