Em frente da casa onde moro tem uma escola estadual. No dia da eleição, a rua fica tomada de carros. Neste ano não foi diferente. E um carro passou o dia bloqueando a minha garagem. Achei que era um eleitor e não ia demorar. Mas não era. Meu filho precisou sair e teve de chamar um Uber.

Como o carro não saía, imaginei o óbvio, deveria ser um mesário. Por volta das 17h30, fiquei por ali na expectativa de conhecer o motorista desatento. Nesse meio tempo, passaram alguns vizinhos, alguns conhecidos, outros não.

Bastou o primeiro se inteirar do que aconteceu para que todos os outros fossem informados e se juntassem num verdadeiro ato de solidariedade a mim e repulsa ao contraventor. Impressiona como um caso desses mobiliza e enfurece as pessoas.

Todos estavam muito mais incomodados do que eu. Alguns se propuseram a ir até a escola à caça do dono do carro. Outros insistiam que eu chamasse a polícia, o guincho, o diabo. Houve até os que sugeriram esvaziamento de pneus, riscos na lataria, quebra de vidros.

A coisa tomava tamanha proporção que passei a temer pelo pior, pedi licença e voltei a entrar em casa. Lá fiquei, espiando pela fresta da garagem, até me certificar de que todos tinham ido embora.

Só, então, voltei a sair. Eu tinha deixado um bilhete no para-brisa do carro, onde perguntava se a pessoa não tinha percebido que a guia era rebaixada. Só isso. Passados cinco minutos, uma senhora vira a esquina e atravessa a rua deserta em direção ao carro. Coloquei-me fora do campo de visão dela.

Apanhou o bilhete, balançou a cabeça bem chateada e veio confirmar que, de fato, estava em frente a um portão de garagem. Quando me viu, ruborizou e começou a pedir mil desculpas, em voz alta. Foi o que bastou para que portas e janelas começassem a ser abertas e uma horda de vizinhos de cenho fechado voltassem à rua e cercassem a pobre criatura. As críticas foram de ironias às acusações mais pesadas.

Tive de, literalmente, empurrar um para longe da mulher. Gritei que fossem todos embora. Alguns foram, outros apenas se afastaram, sempre de olho no desfecho da situação. Desaforos de quando em quando ainda reboavam pela rua. A motorista estava apavorada e eu acabei tendo de pedir desculpas a ela por aquilo tudo.

Quase às lágrimas, voltou a dizer que não tinha reparado na guia. Falei que não era nada e fosse embora em paz.

Fiz esse registro porque me impressionou a maneira com que as pessoas lidam com situações em que farejam um potencial ultraje a algum direito ligado à propriedade.

Tudo é logo atribuído a desrespeito, a desaforo, como se representasse um risco crucial em suas vidas. Parece que há um permanente estado de prontidão contra invasões de privacidade, reais ou simbólicas.

Não há o menor espaço para a suposição de que pode ter havido um engano, uma simples distração, um descuido. Que força é essa que torna a todos cruéis e insanos? Que receio é esse que faz perder o bom senso e a sensatez? Fiquei pensando: será que não tenho razões mais nobres para virar uma causa?

Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing (stalimircom@gmail.com).