O bairro de Ipanema, antes de ser paraíso das imobiliárias, era um exemplo para a humanidade. Durante um pouco mais do que duas décadas foi a prova real da possibilidade de se viver feliz cuidando basicamente do espírito. Ipanema era um espaço onde o lugar-comum que fala que “ser” é mais importante que “ter” podia ser vivido. Não – distraída leitora, caro leitor –, não estou usando as lentes rosadas de se olhar o passado, para transformar em recordação o que não existiu. Nem sou de Ipanema. Quando cheguei na cidade, as placas imobiliárias já eram mais comuns que as moças de corpo dourado a caminho do mar. Ainda havia moças de corpo dourado, ainda se ia ao mar, mas o espírito do doce balanço já estava começando a se perder. Alguns resíduos persistiam. Quando me tornei carioca ainda existia, por exemplo, o Pasquim. Na churrascaria Plataforma, a mesa ao lado esquerdo da entrada ainda era do Tom Jobim. E o maître Garrincha ainda atravessava o salão com o prato de aço inox onde fatias diáfanas de maminha viajavam até as mesas, para casarem com a Farofa Dolabella e com o molho que a campanha. Uma bobagem dita assim, mas um compromisso de prazer quando materializada.

O barulho do restaurante era infernal, pois o salão era imenso, sem nenhum tratamento acústico. E a decoração, a mais bizarra possível. Uma tentativa nada eficiente de imitar uma floresta. Mas funcionava, pois fazia parte da decoração, a freguesia. Detalhe estarrecedor: a Plataforma não era em Ipanema. Era um Posto Avançado. Somente o térreo, diga-se. Pois subindo a escada lateral os turistas chegavam num gigantesco espaço onde rolava o mais plastificado Carnaval. Um esquindô, esquindô em várias línguas, descrevendo uma cidade que nunca existiu: São Sebastião do Rio de Janeiro dos Turistas. Tinha uma tintura de verdade: mulatas gostozérrimas, samba e malandros. No palco e servindo as mesas. Só faltava alma. E alma era o que sobrava no rés do chão. O Plataforma era meio caro, assim como o Antonio’s, outro templo, este em Ipanema. Havia também dezenas de barzinhos onde se podia encher a cara com total dignidade, usando como vestimenta apenas o uniforme do bairro: um calção e uma camisa folgada. Para as mulheres, uma “saída da praia” que se opõe às congêneres “saídas de praia” porque eram mais autênticas e mais reveladoras. Como eu dizia, podia se viver com pouco dinheiro em Ipanema. O que não era aconselhável era tentar viver com pouco talento. As pessoas eram severamente julgadas quando não conseguiam provar que eram incapazes de severamente julgar alguém. Se é que me entendem. Mas, deixa pra lá. Sem problemas, a gente se vê mais tarde na casa de Nara Leão. Ipanema era só felicidade e o paspalho que aqui escreve pegou tudo isso, embora confesse que minha cintura ainda era meio durona para participar do banquete. Comia-se muito, e bem, em Ipanema, em todos os sentidos. Para meu azar, quando assinei o contrato para vir morar no Rio e ser diretor da JMM, que tinha a conta do Banco Nacional, esqueci de deixar por escrito uma singela exigência. Morar em Ipanema. Meu patrão (João Moacir de Medeiros) me instalou num belíssimo apartamento. Mas na Rua Conde de Bonfim, em plena Tijuca. Nada contra. Muito menos a favor. Sem família ainda, e sem vergonha, fui morar num bairro careta.

Assim como Ipanema era a devassidão, Tijuca era a pátria da família. Ainda que nem tanto, mas também nem tão pouco. Eu tinha janelões abertos para o desfile de famílias. Mas ninguém de tanga, ninguém de toalha enrolada deixando antever morenas coxas, nenhum Jaguar (o cartunista, claro), nenhum Tom Jobim, nenhuma Leila Diniz. Quando o contrato do apartamento venceu e eu poderia mudar de bairro, o Pasquim já tinha acabado, o pessoal do andar de cima do Plataforma já estava descendo para o rés do chão, Ipanema ainda tinha algum brilho. Mas já em decadência. E, (oh meus pecados!) surgia um novo bairro, a antítese de Ipanema, uma Zona Norte no mar – São Conrado. De tanto fazer anúncio vendendo as maravilhas daquele bairro, acabei acreditando. E fui morar en São Conrado. Uma espécie de Madureira rica e al mare. Por sorte, meu prédio era meio irreverente e um de meus vizinhos, entre outros, era Raul Seixas. Só para se ter uma ideia do clima do prédio. O síndico era outro maluco, seguidor fiel do mais doido regulamento de edifício jamais criado no Brasil. Como exemplo, ele criou uma extensão do playground em plena praia de São Conrado, de tal forma aparatado que a ninguém ocorreu perguntar se havia alguma legislação que desse guarida ao, chamemos, “avançado”. Quando me mudei de lá, porque a minha mulher engravidou e eu precisava de mais espaço, a “área avançada” na areia ainda pertencia ao prédio, numa interpretação muito liberal do chamado “usocapião”. Porque eu estou contando isso? Porque tive de ir à rua. E meu táxi passou por uma cidade na qual não consegui me lembrar de algum dia ter morado.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)