Os matadores de dragões

O matador de dragão é um arquétipo de herói que todos temos lá dentro do nosso ser. Sentimo-nos especiais por algum motivo que não sabemos e estamos prontos para encarar momentos heroicos e únicos da nossa vida, quando eles aparecerem.

Talvez essa seja a melhor explicação para a enrascada que a humanidade se meteu com as fake news e desinformação digital em geral.

No capitulo 2 do ótimo documentário de Bill Gates: ‘What´s next?’, da Netflix, temos uma boa pista sobre esse inusitado motivo que leva gente boa, bons pais, filhos e boas pessoas no dia a dia se tornarem porta-voz do negacionismo, da agressividade, da necropolítica e do surrealismo politico no digital.

Bill Gates tenta limpar sua barra pesquisando por que ele é alvo de tantos boatos e teorias da conspiração. Numa engenharia reversa da “teoria da conspiração” que o acusa de implantar microchip em vacinas, com bilhões de visualizações. Bill afirma que são acusações falsas, pois faltaria ao chip implantado via vacina uma fonte de energia para que ele funcionasse.

Apesar de não se ajudar muito com esse comentário, vemos nesse capítulo jornalistas renomados fazendo um retrospecto minucioso sobre essa fake news em particular e vale a pena acompanhar atentamente esse passo-a-passo de como bilhões de pessoas no mundo tiveram esse delírio coletivo e acreditam que vacina é uma maneira de controle governamental. Eles explicam literalmente de onde saiu o boato e o passo-a-passo para virar uma desinformação oficial global.

Porém, o mais curioso disso tudo é uma fala de uma jovem antropóloga analisando o porquê da proliferação de histórias falsas como essa.

É que para alguns são notícias falsas, mas para quem as propaga são verdades profundas que só elas entenderam que existem. As teorias da conspiração são fábulas elaboradas em que o mal ronda as pessoas de bem.

Assim como as fábulas, os detalhes factuais distintos acrescentam veracidade e juntos moldam um arco dramático convincente. E como toda história precisa de um herói, os heróis aqui são aqueles que ouvem, leem as fake news e passam para frente. Porque ao reenviar aquilo, estão salvando pessoas daquele dragão de óculos grandes e conta bilionária.

Em suma, as pessoas que passam as teorias da conspiração adiante têm um ponto em comum: querem ajudar. E também se sentem especiais e muito inteligentes, por entenderem algo tão intrincado e oculto. É o momento existencial de completude. Mataram o dragão na vida real. De verdade. Nada que você disser para uma pessoa assim, vai abalar sua fé de herói. Um herói não desiste.

O truque não é novo. Hitler fez isso com o povo judeu. Usou uma estrutura de fábula onde antes os irmãos Grimm colocavam bruxas e demônios, e subsitituiu nessa história por um povo pacífico e trabalhador real. E como dominava a imprensa alemã e o Judiciário, ele basicamente criou uma bolha eficiente de propagação de teorias da conspiração.

Trump, que acaba de ganhar nos Estados Unidos, promete nomear Robert Kennedy Jr, um negacionista notório, para cuidar de segurança de vacinas nos EUA. Robert é um dos principais defensores do movimento antivacina e quer tirar o fluoreto da água, pois na opinião dele é uma maneira que o governo usa para envenenar o povo americano.

E é por essas e outras que redes sociais e internet precisam de leis normais do dia a dia. Hoje elas são como um macaco com uma metralhadora. O resultado com certeza vai ser trágico, mas depois nem vai dar para culpar o macaco.

Flavio Waiteman é sócio e CCO da Tech&Soul
flavio.waiteman@techandsoul.com.br