Eu e todos meus amigos e amigas confinados e confinadas estamos procurando sarna para se coçar. Ou seja: ocupar dignamente as horas que ganhamos. O que fazer do tempo que perdíamos no ir e vir do trabalho. No meu caso, estou gastando exatamente 30 segundos para sair de casa e chegar no escritório. Como utilizar com um mínimo de proveito estas horas que surgiram do nada? Eu decidi arrumar os arquivos de textos que cometi ao longo da vida. É uma quantidade fantástica, mesmo em se tratando de inutilidades. Claro que os milhares de páginas que guardei não significam nada diante de um único poema de Drummond. Mas é minha vida transformada em prosa. E, pelo menos para mim, relembrar-me tem sido uma diversão. Ainda hoje achei um texto que escrevi há tempos contando uma passagem com Miele, de quem tive a honra de editar e de quem tenho muita saudade. A história é a seguinte. Miele foi dono de uma boate chamada Monsieur Pujol, que fez algum sucesso na década de 1970. Sucesso de público e de crítica, já que era um endereço badalado e estava sempre cheia, mas um tremendo fracasso financeiro, eventualmente porque os donos e os amigos dos donos eram os maiores consumidores da casa e não tinham o saudável hábito de pagar a conta.

Em outras palavras, o estabelecimento vivia na maior pindaíba, devendo a todo mundo e sempre com o risco de sofrer uma ação de despejo. Vai daí que num determinado dia ocorre no Rio de Janeiro um casamento de arromba, nível internacional, daqueles de sair semanas a fio nas colunas sociais. Veio gente do mundo inteiro para prestigiar a festa, um escândalo de iates e jatinhos particulares. No dia seguinte da festança os pais da noiva resolvem levar alguns convidados internacionais para jantar e escolhem justamente o Monsieur Pujol, que tinha no começo da madrugada um belo show com algum artista famoso. Fizeram uma mesa gigantesca e mandaram ver no champanhe e no caviar, gastando uma verdadeira fortuna a cada minuto, para total felicidade do Miele, que ia fazendo contas mentalmente. A cada rodada de champanha, de uísque 24 anos ou de caviar beluga, o Miele raciocinava: está salvo o aluguel, aí vai o papagaio do banco, amanhã tem festa no açougue e assim por diante. Lá pelas quatro da madrugada pede-se a conta. Foi mais ou menos por estimativa, já que à certa altura não deu mais para controlar. O freguês, sem ao menos conferir sacou um talão de cheque do banco que ele era dono (o que afastaria a hipótese de qualquer problema com ausência de fundos) e arredondou o valor. Só a arredondada já dava para fechar a folha de pagamento do mês inteiro. Miele estava aos prantos. Tanto ele quanto o maître foram levar os ilustres convidados até a saída da boate, que tinha uma bela escadaria de mármore descendo para a rua. Estavam trocando amabilidades quando lá do fundo vem uma vozinha: “hei, mister, psiu!” Era um garçom balançando um papelzinho. Fez se silêncio, na expectativa de se descobrir o que estava acontecendo. O cara abre espaço entre as pessoas, mostra o papelucho para o milionário e diz: “doutor, o cigarro não está incluído!” Miele afasta o inoportuno dizendo entredentes que ele pagaria. Mas o fulaninho não entendeu direito o recado e continuou: “o cigarro é por fora, é uma gentileza da moçada aí pros fregueses, tá me entendendo?”

Miele no desespero dá um empurrão no infeliz para se livrar do mal-estar. Mas calculou mal a força, ou a raiva deu uma turbinada e o resultado foi que o pobre garçom desabou escadaria abaixo, catando cavaco. Pior: foi levando as pessoas, num festival de peles, bolsas de grife, sapatos de crocodilo. A porta que dava para a rua era de vidro, não resistiu às trombadas e ruiu. O bolo de gente se esparramou pela calçada. Miele no topo da escada, vendo aquela zona toda, aquela barulheira imensa, tentou manter sua fleuma e acenava para as pessoas como se nada tivesse acontecido, como se aquela fosse a mais natural maneira de se sair de uma boate. “Apareçam sempre, apareçam sempre!” Não foi por isso que o Monsieur Pujol fechou.

PS.: eu sei que não se escreve “ontens”. Mas a culpa é da língua. Há muitos ontem na vida.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)